O historiador brasileiro Durval
Muniz Albuquerque Júnior argumenta que se concordarmos que atualmente vivemos uma
condição histórica pós-moderna é preciso então que repensemos as instituições
sociais criadas durante a modernidade e que ainda vigoram. O pressuposto é que
a modernidade (do séc. 18 e 19) fundou determinadas instituições
sociais baseando-se num projeto político-filosófico que não nos diz respeito
mais.[1]
No âmbito educacional, qual projeto seria esse? A educação das pessoas para que
elas atingissem um grau superior de
racionalidade tal qual fosse possível sua emancipação e autogoverno, ou, sendo
mais otimista, que nossas relações sociais passassem a ser baseadas na liberdade,
igualdade e fraternidade. Isto nada mais é que a tentativa da criação de
sujeitos orientados pela razão, que supostamente
levaria a sociedade a uma marcha ao
progresso tecnológico, científico, crítico e social em todos os sentidos.
Esses projetos políticos, filhos do Iluminismo, preencheram as agendas tanto de
liberais, quanto de socialistas, comunistas, anarquistas e etc. A escola dentro
do projeto liberal ou humanista tende, em tese, a este ideal.
Entretanto, alguns acontecimentos
históricos como as duas grandes guerras e a ascensão dos regimes
totalitários (provocando especialmente o holocausto) mostraram que a agenda
moderna, que colocava uma fé demasiada na “racionalidade humana” para atingir
um progresso ininterrupto ou chegar a um final “feliz” da história, tinha
formulado mal seus cálculos. Diante disso, cabe-nos refletir sobre o papel que a
escola cumpre atualmente e o que ela precisa mudar para continuar funcionando;
já que instituições sociais criadas na modernidade (como o manicômio e a
prisão) têm sua validade questionada na pós-modernidade. Cabe-nos, igualmente, repensar o trabalho do professor enquanto sujeito que pretende
formar alunos, enfrentando uma crise da escola e uma desvalorização
profissional que não deixa de ser o reflexo do desencaixe dos mesmos na atual
sociedade.
Neste sentido, Albuquerque Júnior faz inicialmente uma historicização
da criação da escola na modernidade. Vinculada a seu projeto humanista e
liberal, seu papel era tornar o homem dono de si e do mundo, um cidadão apto
para atuar e trabalhar dentro de uma ordem estabelecida burguesa, respeitar
normas e valores comuns, hierarquias, autoridades e assimilar saberes
instrumentais. O nascimento da escola coincide com o solapamento da educação da
criança antes centrada na família. Isto é, neste momento, o Estado toma da família o papel de educar e formar cidadãos. É mais
fácil desde cedo introjetar as maneiras pelas quais as pessoas devem se portar
em adequação às regras coletivas (governamentalidade), formando
indivíduos massificados. O saber escolar é um saber elitizado, pouco afeito às
realidades sociais das classes baixas. Com isso, é inevitável o surgimento de
diversos conflitos dentro do ambiente escolar na medida em que a escola toma o
papel de educar inclusive os filhos das classes pobres. As experiências de vida
dessas pessoas se chocam com os valores e comportamentos transmitidos pela
escola, sobretudo, porque a escola foi uma instituição social inicialmente projetada para preparar a
elite dominante para ocupar os cargos de administração do Estado. Já no século
20, ela precisou formar também uma mão-de-obra especializada para prover as
empresas capitalistas. A partir de então, ela passa a funcionar como uma empresa preocupada, em primeiro lugar, com os lucros.
Os alunos, da mesma forma, apropriam-se de igual maneira. Concluem um curso
somente para obter um diploma que vai permiti-los ingressar ao mercado de
trabalho, sem sequer se preocuparem com a instrução reflexiva e crítica que o saber
pode lhes proporcionar.
Albuquerque Jr. (1961) |
No Brasil durante muito tempo a
escola serviu apenas a uma elite branca e rica. Negros, mulheres e pobres eram
excluídos. Somente após os anos 50 a educação foi se abrindo para a massa e
chegando à zona rural. Diz-se que a qualidade da educação tem piorado desde
então. Como já foi exposto acima, isso pode ser explicado pelo choque entre a particularidade dos saberes
escolares e a heterogeneidade (diferentes concepções de mundo,
valores e perspectivas diversas) do público atendido. Por outro lado, numa sociedade
informatizada como a nossa, na qual há uma circulação veloz de informação e de
conhecimento através das mídias (rádio, TV, Internet),
a escola vai perdendo seu poder de sedução, até mesmo para muitos professores
que a enxergam agora como uma mera obrigação.
Mas será mesmo que
a escola está em crise? Foucault diz que desde a inauguração da prisão, ela é contestada sobre sua
funcionalidade e eficácia. A instituição prisional é fundamentada no discurso segundo o qual promoverá à ressocialização e à
recuperação de presos, mas para o autor a função dela não é a que está expressa
em tal discurso - e é por isso apesar de ser “ineficiente” ela continua
funcionando. Entre outros, o papel da prisão não é para os que estão lá dentro. Mas para os que estão de fora. Para
impor medo aos cidadãos que lhe são exteriores. Neste sentido, será que, apesar
de todo o discurso
humanista, a função da escola não é também a de estabelecer
hierarquias e autoridades através da coerção e perpetuar o modelo social
excludente? Seria uma ingenuidade nossa não perceber esta intenção política? “Realmente, parecemos acreditar que a educação escolar resolveria
os problemas sociais, os problemas políticos, os problemas de cunho moral e
ético pelos quais passamos. Da mesma forma que receitamos o trabalho como um
poderoso antídoto contra, o que consideramos ser, os problemas de nossa
sociedade, sempre fazemos o mesmo com a educação. Embora saibamos que a escola
que temos não agrada a ninguém que está dentro dela, continuamos contraditoriamente
achando que ela é a solução para os problemas de quem dela está excluído”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 13).
Neste sentido, Albuquerque Júnior apresenta uma proposta radical aos professores. Estes devem questionar a
própria escola, o ensino escolar, a escolarização e a noção de formação escolar que é naturalizada. Esse seria o primeiro passo para que as práticas e as maneiras de ensinar sejam
transformadas. Aliás, a própria ideia de “formação” deve ser aí problematizada,
pois ela foi transportada da história
natural evolucionista para o campo humano. Segundo Albuquerque Júnior, deve
ser recusada “a idéia de que cabe ao processo educacional, que cabe à escola, e
nela ao professor, dar forma a esta matéria disforme, esta matéria plástica,
esta matéria infante, que é a criança. [Pois] A escola seria assim lugar de
modelagem de corpos e espíritos, de construção de perfis, de personalidades, de
caracteres, de almas e mentes” (p. 08). Este pressuposto informa sua concepção
conservadora que busca adequar os sujeitos a um processo já previamente estabelecido em que eles apenas ocupariam funções para fazer girar a máquina; posto que formar
nada mais é que colocar um corpo em uma forma pronta.
Por outro lado, “embora muitas pedagogias que se nomeiam críticas
tenham pensado a instituição escolar como um lugar onde se poderiam formar
agentes críticos da realidade social, sujeitos descomprometidos com a ordem
vigente, sujeitos capazes de transformar a realidade social, esbarram na
própria aporia de se pensar uma pedagogia crítica: uma pedagogia crítica é possível? Como uma maquinaria de práticas e
discursos que visam enformar ou formar alguém, como um conjunto de prescrições
pode levar alguém a ser crítico, se a
crítica nasce da possibilidade de ser deseducado, mal educado, da
capacidade de se deformar, de propor e adquirir novas formas de subjetividade
em descompasso com as modelizações subjetivas que a escola e os modelos
pedagógicos nos tentam ensinar?” (p. 09).
Sob esse modelo homogeneizante “a escola está se tornando um lugar de zumbis, de professores e alunos
autômatos, que não sabem direito por que estão ali, mas que apenas executam
rotinas, como peças de uma grande máquina, que assim como na fábrica moderna,
não sabem sequer qual o produto final que estão produzindo. A desmotivação, a
falta de adesão às atividades escolares, a falta de se colocar à disposição
para o que aí ocorre, demonstram claramente esta robotização da atividade
escolar. [...] Os agentes da vida escolar adoram o aluno quieto, disciplinado, certinho, autista, catatônico,
deserotizado. O aluno padrão, que não se singulariza, aquele que não se importa
de ser apenas mais um, uma cifra, um número de matrícula, um nome a mais na
lista de chamada. Os agentes escolares adoram alunos que não querem aparecer,
que não querem se destacar, ou que se destacam por serem obedientes, por
seguirem todas as ordens, por não reclamarem, por serem bem adaptados à cultura
escolar” (p. 10-11).
Por isso, em vez de um professor que forme, é preciso um que deforme, que instaure inclusive um
questionamento sobre os códigos sociais de sua própria formação,
problematizando-os, aferindo seus limites. Um ensino que deforme colocará em
xeque os valores preconizados no passado, desconstruirá verdades absolutas e
naturalizadas, promoverá dissensos e rebeldias, abrirá o “eu” para invenção e para o cuidado de si a partir de seus próprios
valores e escolhas livres, permitirá a coexistência e abertura ao diferente, ao
“outro”, desestabilizará hierarquias e continuidades, deslocará o professor do
centro do saber, colocando em seu lugar o aluno, estabelecendo assim uma
relação na qual um aprenderá com o outro.
Contudo, isso não acontecerá simplesmente com o aumento do salário dos professores, tampouco com a instrumentalização tecnológica e estruturação material do ambiente escolar, pois uma escola não é feita apenas de paredes, tetos, quadros, gizes e computadores. Pelo contrário, existe “uma cultura, um conjunto de concepções filosóficas, políticas, pedagógicas, éticas, econômicas, jurídicas que a instituem e constituem. A escola é uma rede de relações humanas com todas as dimensões que estas compreendem” (p. 12). E, portanto, uma simples reforma não seria suficiente para promover uma transformação completa. Enquanto instituição social, a escola deveria desaparecer. Refletir sobre esse fim é a condição de criar novas maneiras de promover o ensino.
Contudo, isso não acontecerá simplesmente com o aumento do salário dos professores, tampouco com a instrumentalização tecnológica e estruturação material do ambiente escolar, pois uma escola não é feita apenas de paredes, tetos, quadros, gizes e computadores. Pelo contrário, existe “uma cultura, um conjunto de concepções filosóficas, políticas, pedagógicas, éticas, econômicas, jurídicas que a instituem e constituem. A escola é uma rede de relações humanas com todas as dimensões que estas compreendem” (p. 12). E, portanto, uma simples reforma não seria suficiente para promover uma transformação completa. Enquanto instituição social, a escola deveria desaparecer. Refletir sobre esse fim é a condição de criar novas maneiras de promover o ensino.
Resenha de:
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz.
Por um ensino que deforme: o docente
na pós-modernidade. Disponível em: http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/durval/artigos/por_um_ensino_que_deforme.pdf Acesso em: 02 de fev. 2013.
[1] Os
projetos político-filosóficos que fundaram diversas instituições estão
diretamente relacionados a questão dos relatos de legitimidade tratados no post O (des)embaraço da ciência em Lyotard.
Fantástico esse texto! Vou buscar mais coisas sobre esse autor Durval M. Albuquerque Júnior.
ResponderExcluirBastante crítico o Durval, né Vivian?! Recomendo "História - arte de inventar o passado", há ensaios bem interessantes e prazerosos de se ler. Alguns estão já espalhados pela Google. Abraços!
ExcluirA bibliotecária da faculdade indicou o mesmo livro; vou pegá-lo na sexta-feira. Espero realmente fazer uma boa leitura pois já estou buscando autores bacanas para a minha monografia. Muito obrigada! Beijos!
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