domingo, 27 de março de 2016

Os fantasmas da América Latina: Quijano e "imagens da história"

"A conquista do México", por Diego Rivera
Com o acirramento da crise política no Brasil começou a circular uma série de memes na internet cujos conteúdos relacionam-se à história e a memória coletiva. Por mais que possa parecer banal, é interessante refletir sobre alguns destes pois nos permitem acessar e compreender determinadas “imagens da história” que habitam o imaginário social (portanto o consciente e o inconsciente) não somente de pessoas comuns, mas também e até mesmo de estudantes e pesquisadores de história.

São inúmeras estas imagens da (ou sobre a) história. Algumas, embora suficientemente problematizadas e inclusive combatidas pelas teorias e técnicas de um profissional da área, pelo menos num ambiente formal como a universidade, afloram em momentos de debate político quando o objetivo de (con)vencer o outro substitui os argumentos racionais e complexos pela eficácia, às vezes obtida pelas vias emocional ou moral. É o caso da “história-essência”, evocada, por exemplo, no debate sobre a raiz etimológica de uma palavra, que no presente possui um outro significado, para desqualificar a fala do interlocutor. Temos assim a interdição da palavra “mulato” para designar um indivíduo mestiço, já que sua raiz vem de “mula” e em seu emprego original pretendia conotar pejorativamente alguém como “não puro”, “híbrido”. Estranhamente as ressignificações não contam neste caso, mesmo que tenha ocorrido isso com termos como “vadia” e “anarquista” (todos originalmente pejorativos).

Outras duas destas “imagens da história” recorrentes são a “história-cíclica” e a “história-memória/história-exemplar”. A “história-cíclica” baseava-se numa das concepções de tempo dos gregos antigos, assim, os homens mudavam, mas os “eventos estruturais” se repetiam. Também por conta deste pensamento, a história poderia servir como “mestre da vida”, uma espécie de manual para se orientar e agir no presente/futuro. Lembrar torna-se um imperativo! Daí um dos significantes possíveis para “verdade”, na Antiguidade Clássica, ser a palavra aletheia, isto é, o não-esquecimento. O último dos historiadores reconhecidos a defender a concepção de história cíclica foi o britânico Arnold J. Toynbee [1889-1975], diga-se, em sua narrativa fundamentalmente apocalíptica de suicídio ou fim das civilizações. Já a “história-exemplar” gozou de boa reputação durante séculos até ser contestada a partir do século 18 principalmente por meio de métodos de pesquisa advindos da filologia, como informa Koselleck (2006). Hoje vemos estas “imagens” em voga quando as pessoas se preocupam com (ou usam como artifício retórico) a repetição do Golpe de 1964, que precedeu a ditadura militar no Brasil – inclusive lançando mão de comparações forçosas entre elementos do contexto socioeconômico e de lideranças políticas de hoje e de outrora. “A história é o poço inesgotável do qual a água do exemplo jorra, a fim de lavar suas mazelas”, é a máxima que melhor caracteriza este exercício.

Seria ingênuo dizer que os acontecimentos são únicos, não se repetem e que a futurologia é uma ciência destinada ao fracasso? Estaria sendo óbvio demais se afirmasse aqui que a história é um estudo sobre o passado e que sua narrativa somente pode ser construída após os fatos? Fatos que, parafraseando Edward H. Carr (1996), não estão como peixes em cima do balcão da peixaria. Por conseguinte só podem ser (re)constituídos pelos pesquisadores quando acesso tiverem às fontes, qualificadas conforme sua quantidade e diversidade, bem como de acordo com as questões e críticas que podemos a elas fazer. Dito o básico, importa perceber que teoricamente a noção que abrange as três “imagens da história” citadas no post está diametralmente oposta à concepção que melhor caracteriza a história moderna, aquela de movimento, de transformação e mudança. No caso da “história-essência” parece mesmo que nada muda, vivemos como escravos de um eterno passado, atados ao mito da origem. No caso da “história-cíclica”, embora os eventos se desenrolem, não há nada de novo. Também estamos presos. E, por fim, na imagem da “história-memória” como mestra da vida, o passado está mais presente do que o próprio presente, é um trauma que nos impede de seguir adiante devido ao medo da repetição da dor e do dano.

Dois dos memes que viralizaram nestes últimos dias também nos remetem a imagens de imobilidade da história. Ambos se referem ao processo da colonização portuguesa sobre o Brasil e sua associação aos problemas do país. Um deles (extraído de um twitter) indica o caráter de amaldiçoamento devido ao genocídio dos povos indígenas e, o outro (uma legenda sobre o quadro “Desembarque de Cabral em Porto Seguro em 1500”), está no âmbito do mito da origem, do passado que não passa, da inevitabilidade histórica como bloqueadora de futuros. Apresento-os abaixo:

  
Cada um a seu modo me fez lembrar de um texto que me marcou durante a graduação. Chama-se Os fantasmas da América Latina e foi escrito pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano [1928-]. Passo a escrever sobre este agora.

A colonialidade do poder

A partir do conceito de “colonialidade do poder” já utilizado em trabalhos anteriores, Quijano defende a tese segundo a qual a relação de des/encontro entre Europa e América Latina permitiu constituir um novo tipo de poder cujo efeito até hoje é exercido sobre o mundo inteiro. Em outras palavras, “a conquista” ou “o descobrimento” da América pelos europeus alterou profundamente a dinâmica e o diagrama de poder das civilizações que viviam cá nestas terras, na medida em que interrompeu suas experiências históricas plurais. Bem óbvio. Mas além disso a configuração do poder também foi alterada na Europa (a ponto da própria ideia de Europa Ocidental fundar-se a partir daí!) e estendendo-se para o resto do globo. Todos estão cientes de que, com o des/encontro, a América passou a ser dependente e a Europa a possuir o controle. Porém a história baseada num ponto de vista eurocêntrico distorce a função da América Latina neste processo em que realidades históricas como “modernidade”, “globalidade” e “capitalismo mundial” foram produzidas – obviamente a contragosto ou em detrimento dos chamados latino-americanos mas sem os quais estas não teriam existido, segundo o sociólogo.

Desde então a América Latina é vista como “atrasada” por não ter desenvolvido as potencialidades atribuídas a algo essencialmente moderno. Tendo como pressuposto teórico a concepção de que as civilizações possuem sentidos históricos distintos, a análise de Quijano adverte que nosso “fracasso” se dá por duas razões: (1ª) nos foi imposta, eu diria “vendida”, a ideia de que somos iguais aos europeus ou que deveríamos seguir a trilha da evolução unilinear e homogênea por eles traçada, isto é, seguir seu modelo de sociedade para finalmente obtermos o sucesso; (2ª) o modo como foi produzida a versão da história hegemônica distorce a experiência histórica-social dos latino-americanos, impossibilitando-os de enxergar os fantasmas de seu passado e, mais do que isso, fazendo com que se vejam como inferiores em sua natureza material e cultural e não como vítimas de um conflito de poder. Seria necessário então convocar e lidar com nossos fantasmas para resolver os problemas que nos assolam.

Feito o resumo do texto nos dois parágrafos anteriores, passo a esmiuçar passagens que considero importantes. Quijano aborda a pedra fundacional do nosso continente desvelando como outros o seguinte: a produção histórica da América Latina foi a destruição de um mundo histórico e isso precisa ser levado em conta quando pretendemos produzir o sentido de nossa história. Para que o atual espaço social que vivemos pudesse ser o que é hoje, a América Latina, uma trituradora de culturas desintegrou padrões de poder e de civilização, exterminou em curto prazo mais da metade da população vivente (em torno de 50 milhões), eliminou não apenas portadores mas produtores de experiências daqueles povos: dirigentes, intelectuais, engenheiros, cientistas, artistas foram literalmente soterrados. A repressão material e subjetiva aos sobreviventes ao longo de séculos foi tamanha que os transformaram em camponeses iletrados, então explorados pelo processo europeu.

Ao novo padrão de poder produzido, a ideia de “raça” serviu como um elemento fundamental para seu funcionamento. Esta é a parte sofisticada da colonização, aquela em que a dominação necessita de sutilezas. A “raça” neste sentido tornou-se um modo de naturalização das novas relações de poder impostas aos sobreviventes daquele mundo em destruição. Como uma máquina de destruição de subjetividades, a toda a população sobrevivente foi imposta a identidade “índios” – a despeito da pluralidade existente. Ao contrário do que se pensa, não foram os “negros” as primeiras vítimas da racialização, mas os “índios”; para separá-los do “ibéricos” e ao mesmo tempo construir uma matriz homogênea de classificação em escala global [clique para ler a citação]. Isto mesmo. Pois em torno da ideia de raça foram se redefinindo e configurando outras instâncias de dominação já anteriores, como a de gênero. Desta maneira o primeiro sistema de classificação social global da história (“branco”, “índio”, “negro”, “mestiço”, etc.) foi produzido na América e imposto ao restante do planeta, assim como a nova nomenclatura geográfica do poder. Ademais, produziu-se também através da América Latina um novo sistema de exploração social: o controle do trabalho, de seus recursos e produtos direcionados a um mercado global, fazendo emergir o capitalismo mundial. Neste ponto há uma íntima relação entre colonialidade e globalidade. Ninguém em nenhum lugar do mundo poderia estar fora. Talvez mudar sua posição dentro do sistema, mas não ficar exterior.

A posição de superioridade da Europa é conquistada, de acordo com o sociólogo, devido à exploração desta sobre a América Latina, integrando, por seu turno, capital e modernidade. “O domínio colonial da América, exercido pela violência física e simbólica, permitiu que os conquistadores/colonizadores controlassem a produção dos minerais preciosos (ouro e sobretudo prata) e dos vegetais preciosos (no início principalmente tabaco, cacau e batata), por meio do trabalho não-remunerado de escravos ‘negros’ e de criados ou peões ‘índios’ e de seus respectivos ‘mestiços’”, escreve Quijano (2006, p. 70). Até a Revolução Industrial não se produzia na Europa ocidental nada com significativa importância para o mercado mundial, foi graças portanto ao processo de controle sobre a colônia e de exploração sobre o trabalho de “índios” e “negros” que esta conquistou uma posição destacada, como também concentrou benefícios comerciais e juntamente com eles manteve em seus países a mercantilização da força de trabalho local.

Conforme a narrativa de Quijano, por conta do aumento de poder da Europa ocidental e do processo de aburguesamento da sociedade, como viu-se em Espanha pelo menos a partir da expulsão de judeus e muçulmanos (para o autor a primeira “limpeza étnica” moderna), houve uma intensa disputa de poder entre os conquistadores (por espaço, corações e mentes) até mesmo contra a Igreja, mas também contra culturas locais-nacionais. Daí resultou, como estratégia de luta, a auto-identificação da Europa Norte-Central como “moderna”, representando aquilo que seria de mais avançado e novo na civilização humana. Este fato implicou que a Europa seria para a América o centro de desenvolvimento de capital e de modernidade/racionalidade, o verdadeiro modelo histórico a ser seguido. Isto é, além de poder, uma colonialidade do saber, de onde advém a principal perspectiva de produção do conhecimento. Esta está, por sua vez, em desencontro com nossa experiência histórica. Por quê? Ora, porque enquanto aqui até mil e quinhentos tínhamos uma co-presença de tempos históricos e formas heterogêneas de existência social de procedência histórica e geográfica distintas, a visão eurocêntrica de progresso ligada à modernidade e ao capitalismo, tem mais a ver com um radical dualismo (de civilização e barbárie) que se compõe de homogeneidade, continuidade, evolução unilinear e unidirecional.

Então passemos logo a identificar os fantasmas da história da América Latina: Identidade, Modernidade, Desenvolvimento, Democracia e Unidade. Estes seriam portanto elementos do poder e do saber impostos pelo lado mais potente da colonização e abraçados pelos latino-americanos para seu próprio infortúnio. Para que possamos andar com as próprias pernas precisaríamos deles nos livrar. E Quijano já verifica há algum tempo conflitos em torno dos mesmos e novos rearranjos. Primeiro, nas lutas antirracismo e o intercâmbio entre “cor” e “raça”. Em segundo, a tomada de consciência de que “modernização” quis significar nada mais do que “ocidentalização”, numa chave de leitura em que indígenas e africanos foram vistos como pré-modernos ou primitivos. Terceiro, a resistência dos sobreviventes ao defenderem o legado aborígene. Em quarto, o atrito relacional entre as várias versões do europeu: latinicidade, pragmatismo, espiritualismo, etc. E em quinto e último, movimentos indígenas e afro-latino-americanos colocando em questão a versão europeia de modernidade e de racionalidade para afirmarem suas próprias, bem como apresentando valores civilizacionais (por ex., reciprocidade, ética da solidariedade, etc.) enquanto alternativas a tendências predatórias do capitalismo atual.

Pitacos safados

A associação que fiz entre os memes de imobilidade histórica e o texto de Aníbal Quijano tratou-se de uma armadilha da memória (a minha mesmo). A impressão que havia ficado depois da leitura realizada lá pelos idos de 2009 foi a de que o texto de Quijano era extremamente pessimista e possuía uma “imagem da história” tão fatalista quanto os memes a respeito da colonização europeia. Mas me enganei ao relê-lo. O que há de comum entre as “imagens da história” apresentadas por ambos (memes e texto) é talvez o diagnóstico de que nossos problemas estão inextrincavelmente relacionados ao processo de colonização. Porém, enquanto subentende-se que os memes não apontam saídas a não ser aquela de devolver a terra para os “índios” e pedir desculpas (perspectiva que aliás nos coloca como “europeus”), Quijano dá pistas para nos livrarmos do embaraço das estruturas mentais (se quiserem, culturais) desenvolvidas e disseminadas pela colonialidade do poder.

A despeito de sua sofisticação teórica, penso que o ponto fraco do texto seja o de construir uma espécie de latino-americanocentrismo para digladiar com a perspectiva eurocêntrica da história. Quer dizer, não há dúvidas de que a conquista da América Latina e suas relações com a Europa contribuíram para constituir realidades históricas até hoje vivenciadas por todos, além de garantir a posição de soberania europeia por tanto tempo; porém, em alguns momentos, torna-se forçosa a apresentação de algum tipo de modernidade e de capitalismo como condições socioeconômicas irrealizáveis sem a América Latina (diga-se, sua exploração e as implicações disso). O enfoque nos chamados fantasmas históricos (desenvolvimento, unidade, identidade, modernidade e democracia) mostrando-os como vícios do capitalismo, inclusive de governos socialistas, é brilhante. Mas, por outro lado, perde a mão quando olha para um passado remoto buscando sepultar de vez tais fantasmas ao apresentar (como saídas?) os modos de vida e de pensamento das civilizações que aqui viviam quando chegaram os europeus. São mundos históricos infelizmente soterrados para sempre. É típico dos estudos pós-coloniais este tipo de perspectiva. Possui suas razões políticas e são legítimas. E neste sentido uma coisa esta área pode ensinar aos produtores de memes: a história é uma narrativa. Ninguém vai mudar o fato de que os europeus chegaram aqui por volta de 1500, nem que uma série de conflitos foi desencadeada depois disso. Entretanto a perspectiva para compreender estes eventos está aberta. Dentro desta margem de liberdade, os tipos de “imagens da história” que escolhermos construir vão nos fazer olhar para o futuro ou nos prendermos ao passado. O que queremos?

Referências:

CARR, Edward H. O que é história? São Paulo: Paz e Terra, 1996.
KOSELLECK, Reinhart. Historia magistra vitae – sobre a dissolução do topos na história moderna em movimento. In:______. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. São Paulo: Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006, p. 41-60.
QUIJANO, Aníbal. Os fantasmas da América Latina. In: NOVAES, Adauto (org.). Oito visões da América Latina. São Paulo: SENAC, 2006, p. 49-85.
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