terça-feira, 26 de maio de 2015

Como algo acontece para Ginzburg e Foucault: historiografia e acontecimento (3/4)

Este post é a terceira parte da discussão sobre historiografia e acontecimento. Depois de realizar uma introdução sobre o conceito, abordei no texto anterior dois tópicos sobre os livros O queijo e os vermes e Eu, Pierre Rivière..., respectivamente de Carlo Ginzburg e Michel Foucault. Aqui trato da “irrupção do acontecimento” em tais obras.

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Para Julio Aróstegui (2006, p. 313) não existem fatos históricos, assim como não existem fatos sociais. Quer dizer, não há uma distinção entre fato social e fato não-social, assim como não há uma separação entre fatos históricos e fatos não-históricos. Pode-se estender esta observação também ao conceito de acontecimento. Eles são selecionados, construídos e valorados pelos pesquisadores de história. Não estão dispostos como “peixes no balcão de uma peixaria” – relembrando a metáfora de Edward H. Carr. Os acontecimentos ocorrem em espaços e em tempos distintos, são, portanto, únicos, distinguíveis e particulares, ainda que possam ser comparados entre si de acordo com certas características ou através de determinados ângulos (VEYNE, 2008, p. 18, 20).

Contudo, como explicar a irrupção de um acontecimento na história? Seria ele resultado do acúmulo de elementos do passado sob uma relação direta de causa e consequência? Seria ele produto de forças desconhecidas e invisíveis que se chocam por alguma razão com a configuração de um contexto sócio-histórico, fazendo emergir uma novidade que se mistura com o antigo? Seria ele nada mais do que uma mudança em nossas maneiras de ver, sentir e enunciar o mundo e a realidade? Seria ele tudo o que acontece, independentemente de ser diferente do que já tínhamos visto ou não? Ginzburg e Foucault respondem de maneiras distintas a esta questão. Suas respostas não são tão claras e objetivas quanto gostaríamos que fossem, mas podemos entrever uma possibilidade de compreensão através de seus escritos.

Para o historiador italiano Carlo Ginzburg, há um macrocosmo geral e complexo formado por diversos elementos. Em O queijo e os vermes, o contexto sócio-histórico é constituído por: dois acontecimentos maiores, a Reforma Protestante e a invenção da imprensa, ambos, segundo o autor, dando condições de possibilidade à circulação de diálogos orais e, sobretudo, de textos heréticos e críticos à Igreja Católica; a atuação desta instituição através da Inquisição em contrariedade a reforma religiosa; a existência de grupos religiosos e seitas de bruxaria na região, como os anabatistas e os benandanti, que eram contrários ao catolicismo e que se reuniam secretamente; a presença de um substrato de crenças camponesas ligadas a religiões naturais de uma era pré-cristã que nunca foram totalmente extintas e que eram transmitidas através da cultura oral das classes populares; a ciência da época com suas explicações sobre o surgimento da vida conforme a teoria de geração espontânea; e, por último, um conflito de classes em Friuli causado pela disputa entre duas grandes famílias feudais e pela consequente desagregação da economia friulana (pobreza, cobrança exagerada de impostos e identificação dos camponeses à Veneza). Sob estas margens as existências dos sujeitos são condicionadas (GINZBURG, 1987, p. 57). E é a partir delas que eles atuam e os acontecimentos emergem.

Entretanto, Ginzburg só chega à cartografia deste contexto a partir do acontecimento que pretende investigar; quer seja, a maneira como Menocchio pensava e falava ou o conflito do personagem com a Inquisição católica que precedeu sua execução. Esta é a operação historiográfica típica da micro-história. Neste caso, em específico, pesquisa-se a trajetória de vida de uma pessoa comum com o intuito de descobrir a rede de relacionamentos sociais na qual ela está inserida para, finalmente, compreender a articulação entre este microcosmo e o macrocosmo das estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais. O interesse da micro-história não é distinto da história social quando almeja compreender a totalidade a partir do particular; só que neste caso, percebendo o movimento dentro das estruturas através de um microscópio metodológico (REVEL, 2000, p. 17).

Neste sentido, a irrupção do acontecimento se dá num curto prazo e não pode estar de forma alguma desvinculada ou sem sentido com as estruturas que o cercam, constituem suas fronteiras e conferem sua condição de possibilidade de aparecimento. O acontecimento para Ginzburg não é algo totalmente novo como se lançado por um disco voador ou por um ser metafísico do além, ele é histórico e condicionado pelas forças do passado que ainda se movimentam no presente. Em O queijo e os vermes, ligadas às religiões naturais, as crenças camponesas mantidas pela tradição oral da cultura popular submergiram no pensamento de Menocchio assim que uma configuração geral assentou-se na Europa após a crítica da reforma religiosa à doutrina e aos comportamentos da Igreja Católica e a reação desta;¹ os diálogos e os livros com os quais o moleiro tomou contato foram apropriados por meio de um filtro interpretativo, que era a consciência de um membro das classes populares, permeada pela cultura oral (GINZBURG, 1987, p. 83). Digo “membro” porque poderia ter sido (caso no mesmo período) qualquer outro da comunidade, desde que vivenciasse experiências sociais similares às de Menocchio. Por isso, no final da obra, Ginzburg revela a existência de outros moleiros que diziam coisas semelhantes às que o personagem proferia, todavia por algum motivo o conhecimento detalhado destes foi impedido pela ausência de fontes (Idem, p. 191).

Ao contrário de Ginzburg, as páginas que Foucault dedica a comentar a trajetória de Rivière são muito escassas para extrairmos delas conclusões seguras. Mas, em uma mesa-redonda, em 1978, o filósofo faz uma apologia ao acontecimento, descrevendo por “acontecimentalização” a operação presente em suas análises históricas.² Em vez de explicar o acontecimento, através do contexto sócio-histórico, o intento do autor é cruzar, atravessar, relacionar e articular outros tantos acontecimentos. No entanto, o filósofo não constrói essa trama sob uma relação de causa e consequência, por necessidade ou verossimilhança, mas por disparidades, por estranhamentos, por deslocamentos que atentam contra a produção de um todo coeso no qual princípio, meio e fim seriam indissociáveis. Substantivando por “acontecimento” o memorial escrito de Pierre Rivière, Foucault descreve em que medida este acontecimento não se submetia aos discursos pré-existentes que ansiavam capturar a existência do camponês. Assim, escreve:


“Sem dúvida, [o memorial de Pierre Riviére,] no último momento, provocou surpresa: aquele que em sua aldeia era tido como uma espécie de idiota era pois capaz de escrever e raciocinar; aquele que os jornais tinham apresentado como um furioso, um louco, havia redigido quarenta páginas de explicação. E nos meses que se seguiram, o texto suscitou uma batalha de peritos, provocou as hesitações do júri, apoiou a defesa de Chauveau na Corte de Apelação, motivou, sob a caução de Esquirol, de Marc e de Orfila, o pedido de indulto, serviu de documento para um artigo dos Annales d’hygiène no longo debate da monomania. Um movimento evidente de curiosidade e muita indecisão” (FOUCAULT, 2007, p. 211; grifos do autor). 

Por mais que o ato de escrita de Rivière desafiasse a compreensão de seus contemporâneos, Foucault argumenta, em seguida, como paulatinamente os saberes modernos (eruditos ou populares) empreendem a escamoteação da “descontinuidade” – concepção cara ao autor para compreender a história. Estes saberes querem estabelecer uma coincidência entre dois acontecimentos até que se tenha uma totalidade que sirva de explicação “lógica” para ambos; pretendem enxergar uma continuidade entre um e outro, por mais distintos que pareçam. É assim que o triplo assassinato e a narrativa elaborada por Rivière são apreendidos pelos saberes. Ação e palavra: uma mesma coisa!

“Alguns diziam: há no fato do assassinato e no detalhe do que é contado os mesmos sinais de loucura; outros diziam: há na preparação, nas circunstância do assassinato, e no fato de tê-lo escrito, as mesmas provas de lucidez. Logo, o fato de matar e o fato de escrever, os gestos consumados e as coisas contadas entrecruzavam-se como elementos da mesma natureza” (FOUCAULT, p. 212; grifos do autor).

Quanto a isso, há outra diferença teórica que separa Foucault de Ginzburg. Conforme já apontou Albuquerque Júnior (2007, p. 103), enquanto o filósofo francês trata o crime e a narrativa (memorial) como acontecimentos históricos diferentes, Ginzburg compreende o discurso (os interrogatórios de Mennochio, por exemplo) apenas como referências ou representações de um acontecimento ao qual pretende chegar. Sendo assim:


“Ressaltam-se em Menocchio as possíveis continuidades que seu saber poderia significar; é deste ângulo que seu saber é interrogado pelos inquisidores e por Ginzburg. Uns querem descobrir se ele é a continuidade de algum saber herético; Ginzburg quer saber se ele é a continuidade do saber de alguma classe ou mais precisamente dos camponeses, em que medida ele era um fragmento perdido de uma totalidade cultural. Para Foucault interessava ressaltar em Rivière as descontinuidades de suas práticas e discursos, como seu saber é rebelde às questões que são feitas por outros saberes, como sua palavra e seus silêncios escorregam de qualquer aprisionamento numa continuidade” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 108).

Neste sentido, na última parte apresento uma consequência inevitável para o tipo de narrativa cujo elemento indispensável é a continuidade/coincidência como formulação do sentido para explicação histórica: a hierarquização dos acontecimentos. Clique aqui para ler.

Referências:

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. História: a arte de inventar o passado. Bauru, SP: Edusc, 2007.
ARÓSTEGUI, Júlio. O objeto teórico da historiografia. In:______. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru, SP: Edusc, 2006.
FOUCAULT, Michel. Mesa redonda em 20 de maio de 1978. In:______. Estratégia, saber-poder: ditos e escritos, vol. IV. Organização e seleção de textos: Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 335-351.
FOUCAULT, Michel. Os assassinatos que se conta. In: ______ (coord.). Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão... um caso de parricídio no século XIX. 8ª edição. Tradução de Denize Lezan de Almeida. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2007, p. 211-221.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Tradução de Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
REVEL, Jacques. Prefácio: a história ao rés-do-chão. In: LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 07-36.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. 4ª Ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.

Artigo publicado originalmente em:

¹ Para Ginzburg, as ideias de Menocchio vinham de “um substrato de crenças camponesas, velho de muitos séculois, mas nunca totalmente extinto. A reforma, rompendo com a crosta da unidade religiosa, tinha feito vir à tona, de forma indireta, tal substrato; a Contra-Reforma, na tentativa de recompor a unidade, trouxera-o à luz, para expulsá-lo” (1987, p. 63). 
² Marcando uma ruptura, a “acontecimentalização” funciona do seguinte modo: “Ali onde se estaria bastante tentado a se referir a uma constante histórica, ou a um traço antropológico imediato, ou ainda a uma evidência se impondo da mesma maneira para todos, trata-se de fazer surgir uma ‘singularidade’. Mostrar que não era ‘tão necessário assim’; não era tão evidente que [por exemplo,] os loucos fossem reconhecidos como doentes mentais; não era tão evidente que a única coisa a fazer com um delinqüente fosse interná-lo; não era tão evidente que as causas da doença devessem ser buscadas no exame individual do corpo etc. Ruptura das evidências [...] sobre as quais se apóiam nosso saber, nossos consentimentos, nossas práticas” (FOUCAULT, 2006, p. 339).

sábado, 23 de maio de 2015

Uso das fontes e escrita da vida em "O queijo e os vermes" e "Eu, Pierre Rivière": Ginzburg e Foucault - historiografia e acontecimento (2/4)

Dando continuidade ao texto anterior em que iniciei um debate sobre as concepções e usos do conceito de acontecimento na historiografia, neste post apresento as obras citadas no título e desenvolvo discussão sobre o “uso da ordem” e a “individualidade do personagem histórico” em tais. Em edição brasileira, os respectivos trabalhos de Ginzburg e Foucault, intitulam-se O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição, publicado em 1976, na Itália, e Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão... um caso de parricídio no século 19, edição original de 1973, na França.

O livro escrito por Ginzburg trata-se de uma história sobre a trajetória de vida de um moleiro (Domenico Scandella, vulgo Menocchio) que passou por um processo inquisidor da Igreja Católica, durante a Contra-Reforma, no século 16, por ser acusado de heresia e ligação a seitas de bruxaria. Conforme o historiador italiano, a pesquisa sobre um indivíduo comum, ainda que não representativo de sua comunidade, permitiu a descrição da fisionomia de sua cultura e do contexto no qual ele se moldou e, mais, uma hipótese geral sobre a cultura camponesa da Europa pré-industrial (GINZBURG, 1987, p. 12).

Em contrapartida, a obra de Foucault não se trata da narrativa de um único autor. Foucault é o organizador e apresentador de um conjunto de documentos que compõem um dossiê do inquérito que apura um triplo assassinato cometido por um jovem camponês (Pierre Rivière), no século 19. O dossiê é composto por relatórios policiais e jurídicos, depoimentos de testemunhas, interrogatórios, notícias de jornais sobre o caso, relatórios médicos sobre a sanidade mental do acusado, pareceres médicos-legais de reconhecidos profissionais da medicina da época (Marc, Orfila e Esquirol) e, sobretudo, pelo memorial escrito por Rivière, quando preso, narrando seu crime e suas motivações. Foucault assina a apresentação inicial da obra e um dos sete artigos que são escritos ao término. Os outros seis são produções do grupo de pesquisadores do seminário no Collège de France onde Foucault lecionava nos anos 70.¹ Posto isso, a análise teórica do acontecimento na obra centrar-se-á sobre a apresentação e o artigo intitulado “Os assassinatos que se conta” no qual Foucault comenta o caso.   

Ambas as obras centralizam sua organização em torno de acontecimentos ligados a instâncias jurídicas, o primeiro ligado à Inquisição promovida pela Igreja Católica no século 16 e o segundo, à justiça criminal francesa do século 19. Nos dois casos, os personagens principais das narrativas morrem na prisão. Rivière se suicida, Menocchio é punido com a execução. As duas obras partem de análises do cotidiano ou do microcosmo para extrair conclusões referentes ao contexto ou à estrutura social e política. Ambas lidam com escritas de uma vida, ou, pelo menos, com fragmentos de uma vida que, em certa medida, servem não só às obras historiográfica e filosófica como também aos processos judiciários pesquisados por elas. Contudo, a despeito destes, entre outros pontos de encontro, é possível perceber nas produções diversos pontos de dessemelhança, dos quais recorto apenas quatro para compreender as características a partir das quais os autores articulam a noção de acontecimento.

As fontes documentais: o uso da ordem

Os materiais escritos que servem de documentos ao trabalho de Ginzburg são partes do processo inquisidor encontrado nos arquivos da Cúria Episcopal da cidade de Udine, na Itália. Na narrativa, são usados como referências os interrogatórios do moleiro, os testemunhos de pessoas que moravam na aldeia em que o acusado vivia e a lista de livros considerados “heréticos”, encontrados na casa de Menocchio. Durante os anos 70, o historiador pesquisava sobre seitas heréticas e crenças camponesas durante o processo da Inquisição católica e acabou chegando por acaso em Menocchio. Ginzburg diz que devido a “uma farta documentação, temos condições de saber quais eram suas leituras e discussões, pensamentos e sentimentos: temores, esperanças, ironias, raivas, desesperos” (1987, p. 12).

Neste sentido, podemos perceber uma primeira característica no uso de fontes por Ginzburg. Há uma valorização na quantidade delas e a confiança de que, sendo assim, documentos oficiais de uma instituição ou não possam servir como meios para enunciar as maneiras de pensar e de sentir de uma pessoa que viveu no século 16. Entretanto, isso não se dá de forma simplista, pois, conforme o historiador:

“A ideia de que as fontes, se dignas de fé, oferecem um acesso imediato à realidade ou, pelo menos, a um aspecto da realidade, me parece igualmente rudimentar. As fontes não são nem janelas escancaradas, como acreditam os positivistas, nem muros que obstruem a visão, como pensam os cépticos: no máximo poderíamos compará-las a espelhos deformantes. A análise da distorção específica de qualquer fonte implica já um elemento construtivo” (GINZBURG, 2002, p. 44).

Assim, implicitamente, podemos compreender que munido de ferramentas teórico-metodológicas garantidas por uma formação profissional, o historiador terá os instrumentos necessários para formar a realidade através deste “espelho deformante”, selecionando e organizando essa massa de materiais desorganizados e disformes, o conhecimento histórico é construído. Ao que nos interessa neste trabalho, conseguirá ele explicar adequadamente o acontecimento e reconstruir a realidade.

Enquanto Ginzburg defende que, mediada pelos recursos técnicos e teóricos do saber historiográfico, o uso da ordem no contato aos documentos possibilita a compreensão e explicação do acontecimento, Foucault em vez de organizar as informações contidas nos documentos para construir uma narrativa, realiza, no máximo, apenas uma organização externa a partir da cronologia e os expõe integralmente. Dispondo num plano horizontal o processo jurídico de Rivière (contendo dados biográficos, testemunhos, interrogatórios, etc.) os relatórios médicos, os anúncios de jornais e o memorial que tentam explicar o acontecimento (os assassinatos), o filósofo pretende exacerbar o conflito de sentidos e a batalha discursiva entre eles (FOUCAULT, 2007, p. XIII), revelando assim, a fragilidade epistemológica na qual os saberes se apóiam ou a impossibilidade de uma única explicação para o acontecimento. Escreve Foucault:

“[...] um acontecimento em torno do qual e a propósito do qual vieram se cruzar discursos de origem, forma, organização e função diferentes: o do juiz de paz, do procurador, do presidente do tribunal do júri, do ministro da Justiça; do médico de província e o de Esquirol; o de aldeões com seu prefeito e seu cura. Por fim o do assassino. Todos falam ou parecem falar da mesma coisa: pelo menos é ao acontecimento do dia 3 de junho que se referem todos esses discursos. Mas todos eles, e em sua heterogeneidade, não formam nem uma obra nem um texto, mas uma luta singular, um confronto, uma relação de poder, uma batalha de discursos e através de discursos” (Idem, p. XII).

Apoiados em instituições sociais distintas, cada documento almeja estabelecer uma ordem necessária entre os eventos para fundamentar a lógica de sua argumentação e chegar a uma conclusão sobre o acontecimento. Querem produzir um fim. Mas na medida em que diferentes saberes, narrativas e interpretações são reunidas pelo autor, a impossibilidade da ordem é o que se apresenta. As distintas conclusões se anulam. Assim como Ginzburg, Foucault usa os documentos a contrapelo, porém não os interpreta, não os lê como se quisesse dar novo significado a eles, tampouco neutraliza, através de uma crítica interna, o que eles enunciam para determinar se dizem a verdade (FOUCAULT, 2010, p. 07). O filósofo, como um positivista,² toma a verdade que cada um constrói e apresenta e, a partir disso, a possibilidade de confrontá-las e chocá-las verificando seus antagonismos. Enquanto Ginzburg desenvolve uma análise e depois uma crítica problematizada aos documentos para chegar a uma síntese conclusiva sobre a maneira que Menocchio pensava e se expressava, Foucault não faz síntese alguma; em vez de integrar e extrair uma verossimilhança através dos documentos e do contexto, o filósofo separa os discursos e as interpretações a respeito das motivações e sentimentos de Rivière.

A individualidade do biografado

Nas tentativas de explicação do acontecimento, nos dois casos é levada em conta a individualidade do biografado, isto é, as formas próprias através das quais os personagens principais das produções exprimem seus sentimentos, seus pensamentos e suas ações. Contudo, isto é feito de maneira distinta pelos autores.

Ginzburg expõe uma rede de relacionamentos composta por pessoas da classe superior que eram críticas a determinados preceitos da Igreja (e que tiveram contato com o acusado) e procura reconstruir as experiências de leitura de Menocchio, como também desenterra tradições e crenças populares da era pré-cristã, algumas ainda vivenciadas em rituais secretos neste período, para compreender as particularidades do sentir, do pensar, do dizer e do agir do acusado, já que ele era um homem bastante distinto do que poderíamos chamar de “indivíduo-representativo” de sua aldeia. O historiador utiliza o conceito de “circularidade cultural” de Mikhail Bakhtin para designar a comunicação entre as culturas popular e erudita, um processo dialético que seria responsável pela constituição da personalidade do moleiro. A profissão de Menocchio era propícia às trocas culturais interclassistas, tendo em vista que o contato direto com pessoas das classes superiores era bastante comum durante a prestação de serviços do ramo. Assim, para Ginzburg, embora a individualidade de Menocchio não negasse seu pertencimento à classe subalterna, ela era formada pelo resultado do entrecruzamento da cultura da popular à erudita, pois permeada por elementos contrários aos preceitos católicos, que foram trazidos por uma tradição oral e popular, milenar, e por livros e pensamentos da cultura erudita fortemente ligada à conjuntura recente da época que englobava a Reforma Protestante e a invenção da imprensa.

Ainda que o objetivo de Foucault não fosse o de explicar por que Rivière matou seus familiares, o autor recorre ao memorial escrito pelo assassino para compreender aspectos de sua individualidade. A suposta loucura que teria levado Rivière a cometer os crimes apresentava-se paradoxalmente sob uma lógica elaborada. O assassino havia desenvolvido seu plano com antecedência.³ Nele, crime e narrativa não se separavam, sequer tinham uma sucessão cronológica definida, podiam tanto ser provas de sua racionalidade como de sua desrazão. Foucault diz que os contemporâneos aceitaram com facilidade o jogo que Rivière armou para ser num único gesto duplamente autor, do crime e da narrativa (2007, p. 212).

Mais do que isto, não parece a esmo a existência de uma coincidência entre a personalidade do assassino e a contingência da irrupção do acontecimento na história – que Foucault quer mostrar ao relatar as múltiplas interpretações dos saberes sobre a realidade ou as tentativas de capturar a realidade através dos mecanismos de saber-poder. O interesse e o encanto do filósofo questionador da episteme moderna sobre as ações de um indivíduo que desconjunta os saberes jurídicos e médicos e coloca seus discursos em relação antagônica, não são menos informativos do que os de um historiador egresso do Partido Comunista que escolhe contar a história de vida de um integrante das classes populares que desafia uma instituição autoritária e conservadora por considerar que a opressão social brotava dela (cf. GINZBURG, 1987, p. 57). Apesar de se utilizarem de diferentes maneiras da individualidade dos personagens históricos, os autores exprimem, através da escolha destes, suas subjetividades e seus interesses acadêmicos e políticos.

A personalidade de Menocchio agride qualquer modelo historiográfico que pretenda reduzir as pessoas aos aspectos gerais de sua classe, ressalta o acontecimento-vida na história e exprime uma significativa liberdade de atuação, ainda que articulada a conjunturas e estruturas. Por outro lado, os refugos, as voltas e as descontinuidades no memorial escrito de Rivière denunciam o caráter precário dos saberes homogeneizantes e deterministas quando querem apreender o sujeito e a realidade. Demonstram a atuação do acaso na história. Afinal, quem imaginaria ser possível um camponês planejar um assassinato como uma obra de arte, contar a própria história para se incriminar, em vez de se defender, matar a mãe para proteger o pai, se justificando através do Velho Testamento e ainda, por fim, possuir uma inteligência letrada?


Referências:

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
FOUCAULT, Michel. Os assassinatos que se conta. In: ______ (coord.). Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão... um caso de parricídio no século XIX. 8ª edição. Tradução de Denize Lezan de Almeida. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2007, p. 211-221.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Tradução de Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica e prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. 4ª Ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.

Artigo publicado originalmente em:

¹ Logo após o sumário encontramos a seguinte informação: “este dossiê foi organizado, estudado e anotado em um trabalho coletivo realizado por: Blandine Barret-Kriegel, Gilbert Burlet-Torvic, Robert Castel, Jeanne Favret, Alexandre Fontana, Michel Foucault, Georgette Legée, Patrícia Moulin, Jean-Pierre Peter, Philippe Riot, Maryvonne Saison” (FOUCAULT, 2007, não-paginado). 
² Designação atribuída por Paul Veyne (2008, p. 239). Segundo o autor, Foucault é o primeiro historiador a ser completamente positivista. O adjetivo é justificado porque Foucault instaura um método de pesquisa que analisa as práticas e os discursos em suas raridades, em vez de acreditar que uma palavra, um conceito ou uma fórmula possam ser aplicados para a explicação de toda ou de grande parte da história ainda que se usem expressões idênticas para descrever sujeitos e realidades históricas. Quer dizer, em Foucault, o tempo, o espaço e a dinâmica humana são tratados, ao máximo, em suas singularidades.
³ Foucault disse que, na construção do texto memorial, Rivière abandona dois projetos iniciais de escrita e assassinato. O primeiro deveria rodear o assassinato, no cabeçalho constaria sua participação no crime, depois, a biografia de seu pai e sua mãe e, por fim, os motivos de seu crime; assim que este texto estivesse pronto, o assassinato finalmente seria cometido. No segundo projeto, o crime seria exterior ao texto. Num escrito dirigido a todos ele abordaria a vida de seus pais e, depois, faria um escrito secreto relatando o assassinato, então cometeria o crime. No plano realmente levado a cabo, os escritos de Rivière apenas foram produzidos após o assassinato, pois, segundo o próprio, um “sono fatal impediu-o de escrever”. Assim, o projeto é matar, deixar-se prender, fazer suas declarações e depois morrer. Entretanto, ele acaba vagando nos campos durante um mês até ser preso, depois emite declarações mentirosas e só então escreve; e se escreve muito, deixa claro que era porque o manuscrito já estava em sua mente. “[...] daí as palavras maldosas e inutilmente mortíferas que aí se encontram ainda endereçadas às suas vítimas, apesar do assassinato já ter sido cometido” (FOUCAULT, 2007, p. 213).
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