sexta-feira, 31 de julho de 2015

Agradeça sua democracia e filosofia grega aos... árabes!

“Que conversa é essa?” Não, não. O blogueiro não ficou louco. Os árabes foram mestres e educadores do Ocidente latino quando “nosso mundo” abandonou o pensamento filosófico durante um período da Idade Média. Esta é a conclusão a qual chega Alexandre Koyré ao realizar uma pesquisa sobre platonismo e aristotelismo na filosofia medieval. Seu trabalho é relativamente antigo (não para um estudante de história, claro). Data mais precisamente do ano de 1944. E foi publicado numa revista acadêmica canadense, chamada Les Gants Du Ciel.

Alexandre Koyré foi um filósofo franco-russo, que viveu entre 1892 e 1964 e pesquisava sobre história e filosofia da ciência. Ele explica nesta pesquisa que os árabes foram, de fato, professores do Ocidente e não somente intermediários como estava sendo escrito até então. Por que o autor diz isso? Afinal a filosofia com a qual construímos nosso conhecimento teórico e científico e nosso modelo de democracia veio dos gregos (helênicos) e foi herdada pelos romanos (latinos), correto? Mais ou menos. Primeiro porque os romanos, como mais tarde sublinhou Paul Veyne (2010), eram indiferentes (quase totalmente) à ciência e à filosofia.

“Os romanos se interessam pelas coisas práticas: a agricultura, o direito, a moral. Mas, por mais que procuremos, em toda a literatura latina clássica, uma obra científica digna desse nome, não a encontramos. Muito menos uma obra filosófica. Encontraremos Plínio, isto é, um conjunto de anedotas e bisbilhotices; Sêneca, isto é, uma exposição conscienciosa da moral e da física estóicas, adaptadas – ou seja, simplificadas – ao uso dos romanos; Cícero, isto é, ensaios filosóficos de um diletante homem de letras; ou Macróbio, um manual de escola primária”, escreve Koyré (1991, p. 24).

Além do mais, os romanos também não se preocuparam em realizar traduções da filosofia grega, com exceção de poucos diálogos traduzidos por Cícero (entre eles, o Timeu). Nem Platão, nem Aristóteles, nem Euclides, nem Arquimedes foram traduzidos para o latim durante a época clássica, período de hegemonia dos pagãos. “Pois se o Órganon, de Aristóteles, e as Enéadas, de Plotino, o foram, no final das contas isso só ocorreu muito tarde e foi obra de cristãos”. Koyré sugere que este fato poderia ser relativizado na medida em que todo “bem nascido” romano, isto é, um patrício, aprendia grego. Contudo a questão é mais complicada. A aristocracia romana não era totalmente “helenizada” senão em círculos muito pequenos.

O contrário se passa no mundo árabe. Antes do fim da conquista política (e para Henri Pirrene a era medieval começa com a invasão dos árabes à península ibérica e não com a dos germânicos, chamados outrora de “bárbaros”, sobre Roma), os árabes-islâmicos vão em busca da civilização, da ciência e da filosofia gregas. “Todas as obras científicas e todas as obras filosóficas serão, ou traduzidas, ou – é o caso de Platão – explanadas e parafraseadas” (p. 25). Nesse sentido é possível afirmar que o mundo árabe esteve correto ao dizer-se herdeiro e continuador do mundo helênico. Sua Idade Média está mais para o que foi o nosso Renascimento. Foi exatamente por esta razão que os árabes puderam desempenhar o papel de educadores do Ocidente latino. Algo que atrapalha e muito o estereótipo do árabe como ser exótico, inculto e grosseiro construído pelos europeus, ainda predominante no Ocidente contemporâneo.

Mas você, que não é estudante de história, deve estar se perguntando por que raios os árabes tiveram de ensinar algo do qual nós, ocidentais, já conhecíamos. Então. Com certeza você já ouviu falar das horrendas invasões “bárbaras” que destruíram o Império Romano, desencadearam um acentuado processo de ruralização e mergulharam o mundo ocidental num período de sombras, barbárie e ignorância. Pois bem. Essa imagem do medievo como “Era das Trevas” já foi suficientemente desconstruída pelos historiadores franceses dos Annales, contemporâneos de Koyré. Entretanto este quadro pintado pelos iluministas não é completamente falso. Alexandre Koyré escreve que a Idade Média realmente teve sua época de relativa barbárie política, econômica e intelectual mais ou menos entre os séculos VI e IX. “Mas teve também uma época extraordinariamente fecunda, época de vida intelectual e artística de uma intensidade sem par, que se estende do século XI ao século XIV (inclusive), e à qual devemos, entre outras coisas, a arte gótica e a filosofia escolástica” (p. 22).

Pronto. Chegamos à filosofia escolástica. Os escolásticos foram os promotores da educação filosófica da Europa, criadores da terminologia que ainda nos servimos e aqueles que possibilitaram a retomada do contato com a filosofia da Antiguidade. A escolástica que, para simplificar, trata-se de um conhecimento construído a partir dos fundamentos da filosofia grega para conciliar fé cristã e razão, tornou-se hegemônica a partir do século IX. São Tomás de Aquino foi o principal filósofo escolástico. Ele tentou “cristianizar” a obra de Aristóteles, o mais importante autor para o medievo. Antes dele, os árabes já faziam o mesmo processo de conciliar o Islã ao aristotelismo. Questões tratadas pela filosofia medieval como se o espírito ocupa ou não um lugar no espaço, se o verdadeiro pensamento pode ou não ser individual ou sobre a unidade do intelecto humano já tinham sido discutidas nas teorias de filósofos árabes como Avicena (930-1037) e Averróis (1126 - 1198).

A tentativa de conciliar a doutrina política de Platão estava sendo feita desde Alfarábi (872-950). O mundo árabe conheceu Platão muito melhor do que os latinos puderam conhecê-lo, assegura Koyré. “Como é sabido, a doutrina política de Platão culmina na dupla ideia da Cidade ideal e do Chefe ideal da Cidade, o rei-filósofo que contempla a ideia do Bem e as essências eternas do mundo inteligível, fazendo reinar a lei do Bem na Cidade. Na transposição farabiana, a Cidade ideal torna-se a Cidade do Islã e o lugar do rei-filósofo é tomado pelo profeta. Isso já é bastante claro em Alfarábi. E ainda mais claro em Avicena, que descreve o profeta – ou o Imã – como o rei-filósofo, o Político de Platão” (p. 29). Outro filósofo escolástico, o monge franciscano Roger Bacon, vai copiar Avicena, aplicando ao papa o que o filósofo árabe conferiu ao Imã numa pretensão de teocracia universal.

A partir destes entrecruzamentos, Koyré assegura o seguinte: “A barbárie medieval, econômica e política – como demonstram os belos trabalhos do grande historiador belga Pirrene –, teve como origem muito menos a conquista do mundo romano por tribos germânicas do que a ruptura das relações entre o Oriente e o Ocidente, entre o mundo latino e o mundo grego. E é o mesmo motivo – a falta de relações com o Oriente helênico – que produziu a barbárie intelectual do Ocidente. Como foi a retomada dessas relações, isto é, a tomada de contato com o pensamento antigo, com a herança grega, que impulsionou o desenvolvimento da filosofia medieval. Por certo, na Idade Média, o Oriente – exceção feita a Bizâncio – não mais era grego. Era árabe. Assim, foram os árabes os mestres e educadores do Ocidente latino” (p. 23).

As primeiras traduções de obras filosóficas e científicas gregas para o latim foram feitas não diretamente do grego, mas através do árabe. E isso não ocorreu somente porque não tinha mais ninguém no Ocidente que sabia grego, mas também porque não existia mais ninguém, afirma Koyré, que fosse capacitado suficientemente para compreender livros difíceis como a Física ou a Metafísica de Aristóteles. Desta forma, sem o auxílio de Alfarabi, Avicena e Averróis, os latinos nunca teriam tido acesso a tais obras. Sobretudo porque para compreender gente como Platão, Aristóteles e Ptolomeu não basta apenas saber ler grego, mas é necessário saber filosofia. Coisa que a antiguidade latina pagã ignorava, não sabia, nem queria saber (e talvez até tivesse raiva de quem soubesse).

Apesar disso, o florescimento da civilização árabe-islâmica durou pouco. “O mundo árabe, após haver transmitido ao Ocidente latino a herança clássica que recolhera, perdeu-a e até a repudiou” (p. 25). Mas isso não se deve ao que muitos escrevem até hoje: uma suposta fobia genética dos árabes pela filosofia ou uma impenetrabilidade espiritual do oeste ao leste do globo. O que fez com que o mundo árabe se tornasse hostil à filosofia foi uma reação violenta da ortodoxia islâmica, aponta Koyré. Pois reprovava nela, com razão, sua atitude antirreligiosa: o valor da dúvida, da crítica e do questionamento. Mas também por questões bélicas, as inúmeras invasões turcas e mongólicas (e berberes na Espanha). Acontecimentos que contribuíram muito para toda carga de elementos do fanatismo que até hoje compõem seguimentos da religião islâmica.

Referências:
KOYRÉ, Alexandre. Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.
VEYNE, Paul. Quando nosso mundo se tornou cristão (312-394). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
* Todas as imagens do post são do cartunista jordaniano Amjad Rasmi.
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