domingo, 14 de junho de 2015

Textura e hierarquização dos acontecimentos em Foucault e Ginzburg: historiografia e acontecimento (4/4)

Compartilho abaixo a última parte de um artigo meu publicado na Revista Teoria da História da Universidade Federal de Goiás ano passado. Trata-se de uma análise teórica sobre o conceito de acontecimento e seus desdobramentos nas obras O queijo e os vermes (do historiador italiano Carlo Ginzburg) e Eu, Pierre Rivière que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão... (organizado pelo filósofo francês Michel Foucault). Na primeira parte iniciei o debate sobre as concepções de acontecimento da historiografia, na segunda abordei o uso das fontes e da biografia do personagem histórico nas obras citadas, para logo depois, na terceira, tratar da irrupção do acontecimento. Neste post finalizo apresentando um último elemento diferencial na narrativa dos dois autores e proponho uma reflexão sobre a importância do acontecimento para a história.

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Por conta dos objetivos de cada obra, diferentemente de Ginzburg, Foucault não intenta desvendar através de um contexto sócio-histórico as causas e as condições de possibilidade do acontecimento ligado a Rivière – seja seu crime, sua narrativa ou a relação conflituosa dos saberes judiciários e psiquiátricos ao lidar com seu caso. Mas se engana quem acredita que Foucault se desfaz do contexto em privilégio de uma análise formalista ou semântica dos textos. Pois da mesma forma que Ginzburg recorre a textos antigos e novos para construir uma determinada cartografia social, econômica, política e cultural da Europa e, sobretudo, de Friuli, Foucault também apresenta um breve contexto da cultura popular francesa da época, que serve mais como canais para compreendermos a importância do acontecimento, de assassinatos, por exemplo, do que para explicar suas irrupções.

Assim, é assegurada uma relação entre o memorial escrito por Rivière e a série de narrativas que formavam uma espécie de memória popular dos crimes (FOUCAULT, 2007, p. 215). Formando uma “textura”, os folhetos jornalísticos do período, relatavam os crimes que circulavam pelas vilas, aldeias e cantões, onde eram contados e até cantados pelos habitantes destes lugares. De certa forma, era a única maneira de pessoas comuns dividirem espaço nas manchetes de jornais com soldados, personagens poderosos e reis e de fazerem parte da história escrita, ainda que abaixo do poder e em choque com a lei (Idem, 216). Para Foucault, esses dois tipos de história são atravessados por um acontecimento particular: o assassinato.

“O assassinato é o ponto de cruzamento da história e do crime. É o assassinato que faz a imortalidade dos guerreiros (eles matam, fazem matar e aceitam eles mesmos o risco de morrer); é o assassinato que assegura o sombrio renome dos criminosos (eles aceitaram, vertendo sangue, o risco do cadafalso). O assassinato estabelece o equívoco do legítimo e do ilegal. [...] Com ele se colocam sob uma forma absolutamente despojada a relação do poder e a do povo: ordem de matar, proibição de matar; suicidar-se, ser executado; sacrifício voluntário, castigo imposto; memória, esquecimento” (FOUCAULT, 2007, p. 217).

Ademais, o autor expõe que a História durante tanto tempo, seguindo a receita da poética aristotélica, excluiu de sua narrativa determinados personagens, nomes, gestos, diálogos, objetos por considerá-los indignos ou sem importância social.

É possível notar que além de Foucault não estabelecer uma hierarquização causal de acontecimentos, também não hierarquiza os discursos produzidos por personagens ou instituições, mas constrói uma relação de vizinhança e de similitude entre eles. Inclusive, podemos perceber isso na forma de organização do dossiê. Ao invés do autor apresentar o “assassino”, neutralizando suas palavras, procura lidar com seu discurso da mesma maneira que tratou os relatórios médicos, jurídicos e as notícias dos jornais, valorizando os escritos de Rivière e deixando que ele fale por si mesmo. Essa atitude fez parte de um exercício no qual o grupo de pesquisadores (GIP) promoveu encontros, palestras, reuniões e diálogos nas prisões francesas na década de 1970, dando voz aos prisioneiros, aos silenciados (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 101).

Em O queijo e os vermes ocorre o contrário. Pois, ainda que se distancie da História que se dedicava a estudar exclusivamente “as gestas dos reis”, Ginzburg não dá voz a seus personagens, ou, quando dá, neutraliza-os com os saberes da historiografia. É ele quem fala no lugar de Menocchio quando o apresenta no início do livro: “Chamava-se Domenico Scandella, conhecido por Menocchio. Nascera em 1532 [...], em Montereale, uma aldeia nas colinas do Frioli, a 25 quilômetros de Pordenone, bem protegida pelas montanhas” (GINZBURG, 2007, p. 37).

Por mais que Ginzburg escreva uma história de um indivíduo da classe popular e valorize a presença de uma camada de crenças camponesas conservada pela cultura oral, o autor acaba estabelecendo uma hierarquia contextual na qual os acontecimentos ligados à classe erudita e ao macrocosmo possuem um grau de importância maior a ponto de condicionar uma existência. Assim ele escreve:

“Dois grandes eventos históricos tornaram possível um caso como o de Menocchio: a invenção da imprensa e a Reforma. A imprensa lhe permitiu confrontar os livros com a tradição oral em que havia crescido e lhe forneceu as palavras para organizar o amontoado de idéias e fantasias que nele conviviam. A Reforma lhe deu audácia para comunicar o que pensava ao padre do vilarejo, conterrâneos e inquisidores [...]. As rupturas gigantescas determinadas pelo fim do monopólio dos letrados sobre a cultura escrita e do monopólio dos clérigos sobre as questões religiosas haviam criado uma situação nova, potencialmente explosiva” (GINZBURG, 1987, p. 30).

Não é o intuito questionar aqui as hipóteses que levam às conclusões de Ginzburg, que me parecem muito válidas e coerentes, porém sendo a proposta do trabalho construir uma análise teórica sobre a produção, cabe ressaltar a hierarquização de acontecimentos feita de maneira a priorizar estes dois que apresentei.¹ Também vale ressaltar que este aspecto não é incomum em produções historiográficas, sobretudo às que lidam com a separação classificatória entre “classe dominante” e “classe subalterna”, como Ginzburg faz.

O problema, neste caso, apresenta-se da seguinte forma: para além do aceite ou não da separação da comunidade em classes, que traz em si uma hierarquia de comando e dependência, acaba-se caindo no modelo historiográfico que compreende a classe popular como vítima de uma imposição cultural da classe erudita, justamente a prerrogativa da qual Ginzburg diz querer escapar. Mas sua fuga é muito tímida. O uso do conceito de circularidade cultural de Bakthin, que poderia servir para dar conta do recado, cumpre apenas parte de sua função. Pois se é verdade que diálogos, pessoas, textos de diferentes classes circulavam nas redes de relacionamentos e que dentro da classe popular já existiam elementos críticos ao catolicismo hegemônico, para Ginzburg esse choque só foi possível porque ocorreram acontecimentos ou aglutinaram-se elementos da classe erudita que eram correspondentes ao pensamento e às atitudes críticas, até então, ocultas na classe popular. Quer dizer, é como se as classes populares não pudessem gestar criações e pensamentos no interior de suas próprias comunidades e desenvolver formas de resistências, independentemente de serem afetados por “grandes acontecimentos” ou do contato inevitável com a chamada “cultura erudita”.

Esta operação empreendida por Ginzburg ainda é bastante comum na escrita da história. Muitos historiadores relutam em abandonar ou em relativizar a hierarquização de acontecimentos que estabelece uma prioridade, às vezes determinista, às estruturas políticas, econômicas e culturais em nível nacional ou internacional. Neste caso, o micro acaba sendo apenas uma prerrogativa para continuar dando maior atenção ao macro, aos “grandes acontecimentos” ou às estruturas.² Como reflexão, penso que seria difícil compreender os pensamentos e as ações de uma família de camponeses no interior do centro-oeste brasileiro, entre 1960 e 1970, reduzindo-os ao Golpe Civil-Militar, de 1964, como marco de análise.

Considerações finais: a importância do acontecimento na História

Em Políticas da escrita (1995), o filósofo Jacques Rancière desenvolve uma reflexão interessante sobre a importância do acontecimento na e para a História. Contribuição esta que, infelizmente, tem sido ignorada pela maioria dos historiadores.

Para Rancière, na tentativa de retirar a prioridade dada aos acontecimentos pela história praticada no século 19, os modelos historiográficos do século 20, especialmente com a participação decisiva dos Annales, empreenderam uma neutralização do objeto próprio do saber histórico: o acontecimento. Esta neutralização se deu sob a negação da racionalidade própria do acontecimento que “é aquela do real, que não se preocupa em se fazer preceder, justificar, fundamentar por sua possibilidade” (RANCIÈRE, 1995, p. 242). Na busca de uma narrativa mais próxima ao real, a história acabou recorrendo ao “realismo” que submete o real apenas àquilo que é possível a partir das estruturas que o precedem. Desta forma, o jogo da realidade, enquanto relação de dependência ou de independência, entre o já existente e a surpresa do acontecimento é suprimido pela assertiva do realismo que diz que somente o possível é contável na história. Com isso, a racionalidade historiadora, “chega a identificar o tempo como o sistema das condições dessa possibilidade” (Idem). Para Lucien Febvre, por exemplo, Rabelais não poderia ser ateu no século 17 porque seu tempo não lhe dava tal possibilidade. Neste caso, o termo “tempo” adquire o significado do conjunto das condições linguísticas e culturais que encarnava as estruturas de crença em sua época. Seria, portanto, um anacronismo, uma “insubmissão ao tempo”, pensar desta maneira (cf. RANCIÈRE, 2011).

No entanto, Rancière adverte sobre alguns riscos de uma adoção irrestrita deste modelo de pesquisa histórica. A ineficácia de uma réplica aos negacionistas do Holocausto é um deles. Um dos argumentos destes é o seguinte: apesar da existência de indícios não há um encadeamento de causa e efeito entre seus materiais a ponto de ser completado através de um processo objetivo, e para que possa servir como prova de que aquilo aconteceu. Realmente, se formos pensar o conceito de acontecimento (definido no início deste escrito), percebe-se que o raciocínio é coerente, já que o acontecimento não é simplesmente uma reunião de fatos, mas também uma interpretação por quem e para quem este designa um sentido. Logo, depende não só de uma objetividade, mas de uma subjetividade.

Mas o argumento mais problemático sobre a inexistência do acontecimento do Holocausto é o que diz que não era possível ele acontecer, pois era impensável a partir das mentalidades, num período de pós-guerra, que almejavam paz e sentimento de união à humanidade. Vidal-Naquet respondeu aos negacionistas dizendo que não se devia perguntar como tecnicamente aquilo foi possível, pois foi possível porque aconteceu. Logo, ele inverteu o raciocínio do saber histórico que submete o acontecimento à possibilidade, agora priorizando o acontecimento (RANCIÈRE, 1995, p. 245). E talvez esta seja a saída para que captemos a mudança e o movimento na história. É preciso, neste caso, mais do que nunca, acreditarmos no acontecimento ainda que ele não tenha uma relação de submissão com as estruturas (mentais, políticas, econômicas, etc.).

Em última instância, pode ser que o maior risco da supressão do acontecimento seja o de cairmos num imobilismo da história ou, como apontou Rancière, chegarmos num “fim da história”, no qual só conseguimos declarar a inexistência dos acontecimentos, e num “fim da política”, no qual só conseguimos lamentar a inexistência de valores, de mudanças, de sentimentos, de sonhos e de futuro.

Referências:

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. História: a arte de inventar o passado. Bauru, SP: Edusc, 2007.
FOUCAULT, Michel. Os assassinatos que se conta. In: ______ (coord.). Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão... um caso de parricídio no século XIX. 8ª edição. Tradução de Denize Lezan de Almeida. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2007, p. 211-221.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Tradução de Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
GINZBURG, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. In:______. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991, p. 169-178.
RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon (org.). História, verdade e tempo. Chapecó-SC: Argos, 2011, p. 21-49.
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

Artigo publicado originalmente em:

[1] Albuquerque Júnior assevera que tal raciocínio se dá porque Ginzburg não considera o que foi dito como acontecimento autônomo e o reduz às condições de sua produção enquanto exigência de uma metodologia totalizante (2007, p. 109).
[2] Em uma comunicação proferida, de 1979, Ginzburg diz o seguinte sobre seu método: “A análise micro-histórica é, portanto, bifronte. Por um lado, movendo-se numa escala reduzida, permite em muitos casos uma reconstituição do vivido impensável noutros tipos de historiografia. Por outro lado, propõe-se indagar as estruturas invisíveis dentro das quais aquele vivido se articula. O modelo implícito é o da relação entre langue e parole formulado por Saussure. As estruturas que regulam as relações sociais são, como as da langue, inconscientes. Entre a forma e a substância há um hiato, que compete à ciência preencher” (GINZBURG, 1991, p. 177-178, grifos meus). Creio que o problema seja o de tentar entender a articulação entre a estrutura e o vivido, porém acreditar que o vivido está submisso, irrestritamente, à estrutura; por isso destaquei a palavra “dentro” para compreendermos a relação de dependência do primeiro ao segundo, segundo este método de pesquisa.  

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