quarta-feira, 29 de abril de 2015

Max Stirner, a primeira biografia

Em 1844, Max Stirner publica seu primeiro e, verdadeiramente, único livro: intitulado O único e a sua propriedade (em alemão: Der Einzige und sein Eigentun). É graças a ele que o nome de Stirner aparece na história da filosofia mais do que um mero integrante dos “jovens hegelianos” ou um amigo de Bruno Bauer. A importância de seu livro se deu muito em função das críticas feitas por Marx e Engels n’A ideologia alemã. Porém não se pode dizer que esta seja a principal causa responsável por sua lembrança ainda nos dias de hoje. E o exemplo é Bruno Bauer – como tantos outros que ficaram no rodapé da filosofia marxiana sem de lá não saírem mais. Creio, aí sim, que a apropriação tardia de seu livro, feita por escritores e ativistas anarquistas tenha a maior contribuição para que Stirner não caísse numa espécie de buraco negro do esquecimento. 

O principal responsável pela popularização póstuma da obra de Stirner foi o escocês, radicado na Alemanha, John Henry Mackay. Escritor e poeta anarquista-individualista, Mackay publicou uma biografia de Max Stirner em 1897, ainda sem tradução para o português. Tive acesso a uma versão em inglês da mesma, de 2005, e por de não haver tradução para nosso idioma, publico este post que faz um resumo e alguns comentários sobre a obra, divulgando a biografia para o público lusófono.

Em 1887, numa visita ao Museu Britânico, Mackay ficou sabendo da existência da obra de Stirner ao ler uma passagem do livro História do materialismo, de Friedrich Lange. Identificado com a filosofia stirneriana, o poeta anarquista procurou mais informações a respeito do autor e ficou frustrado ao perceber que ele havia sido esquecido. Daí lhe surgiu um desafio: reconstruir a memória de Stirner, escrevendo uma biografia. Mackay sabia que não ia ser fácil encontrar informações a respeito de seu biografado, mas parece que não pensou que seria tão difícil. Ele enviou cartas a inúmeros jornais alemães requisitando notícias, fotos, correspondências, qualquer coisa que pudesse enfim servir de fonte para seu trabalho. Mas ficou decepcionado com as respostas (isto é, com as que vieram). Diante disso, seu livro demorou muito tempo para ficar pronto e foi publicado com várias lacunas. Mackay diz que inicialmente não conseguia compreender por que os alemães haviam “abandonado” Max Stirner. Porém, ao cabo, começou a construir algumas hipóteses.

A primeira destas parece mais algo em que um biógrafo apaixonado por seu objeto de pesquisa quer acreditar. Stirner seria exatamente a expressão de sua filosofia, um egoísta, independente do resto do mundo. As outras três são menos poéticas mas não deixam de ter a ver com a primeira pressuposição: o isolamento em que viveu Stirner durante muitos anos de sua vida, sobretudo em seu período final;  as mudanças na vida pública da Alemanha após as revoluções de 1848 e a forte reação que houve contra intelectuais radicalistas; e o caráter tipicamente fechado do biografado, que não possuía amigos íntimos ou herdeiros que pudessem dar qualquer tipo de informação sobre sua vida (MACKAY, 2005, p. 05-07).

A biografia de Mackay repete um lugar-comum e divide a vida de Stirner em três fases: nascimento, ascensão e queda. A primeira vai de sua infância e juventude até o fim de seu período como estudante (1806-1844). A segunda se refere à publicação de O único e sua recepção (1844-1846). E a terceira descreve o período de esquecimento e solidão, até sua morte (1846-1856).

Johann Kaspar Schmidt (nome original de Stirner) nasceu em 25 de outubro de 1806, na cidade de Bayreuth, situada no Reino da Baviera, sudeste da atual Alemanha. Era filho único do casal Albert Schmidt e Sophia Eleonora, e continuou sendo, já que seu pai, um fabricante de flautas, morreu quando Johann ainda era muito pequeno. Sua mãe casara-se novamente com o gerente de uma farmácia. Há poucas informações desta época, contudo, Mackay registra que a família se mudou para Kulm logo após o casamento, em 1809. A causa desta mudança é imprecisa. Mas sabe-se que no ano em que nasceu Johann, Bayreuth, que estava sob o domínio da Prússia, havia sido devastada pelas guerras napoleônicas. E que, depois disso, ela passara para as mãos dos franceses, período em que a fome e a inflação se acentuaram na região. Pouco tempo depois Johann regressa a cidade natal e faz estadia na casa de um padrinho, de onde só sai de novo para ir à faculdade.

Após passar oito anos frequentando o liceu clássico de Bayreuth, Johann Schmidt ingressou, em 1826, na Universidade de Berlim. Segundo a descrição de Ludwig Feuerbach, esta instituição parecia um reformatório se comparada às “cervejarias reais” (outras universidades) do resto da Alemanha. Schmidt se matriculou no curso de Filosofia e teve aulas com Karl Ritter, Schleiermacher e Hegel. Neste período estudou teologia; simbolismo da Igreja, história da Igreja e do cristianismo primitivo; história e filosofia da Grécia Antiga; geografia da Grécia e de Roma. Depois, em 1828, foi para a Universidade de Erlangen (cidade natal de sua mãe). Lá assistiu apenas a alguns seminários e palestras e interrompeu seu trimestre de estudos para fazer uma viagem percorrendo boa parte da Alemanha. No outono de 1829 se inscreveu na Universidade de Konigsberg, mas logo voltou para Enlanger a fim de resolver assuntos familiares (o biógrafo não sabe quais). Só voltaria a Universidade de Berlim em 1833, somando cinco anos afastados. Logo mais, em março do ano seguinte, Schmidt retirou seu nome dos registros da mesma universidade. Daí solicitou a realização de exames para habilitá-lo no ensino de línguas antigas, alemão, história, filosofia, religião e outras matérias, sendo estas em séries escolares inferiores. Tratava-se de um pedido incomum, anota Mackay, porque era bastante extenso. Mas a razão possa ter a ver com as dificuldades financeiras de Schmidt.

Para a avaliação foi exigido tradução de um texto de Tucídides, aulas e apresentações orais e a produção de um artigo sobre as leis da escola. Schmidt teve muitas dificuldades em cumprir os prazos devido a problemas de saúde e também o início da doença mental de sua mãe, diagnosticada com uma patologia chamada “ideia-fixa”. Isso interferiu em sua avaliação. O resultado não foi excelente e ele não conseguiu habilitação em todas as áreas que pretendia. O que significava que ele não teria facilidade na procura de um emprego como professor. As coisas se complicaram quando em 1837 seu padrasto morreu. Louca e sem parentes, Sophia Eleonora, mãe de Schmidt, só tinha o filho para cuidar dela. Sua herança era pequena e ficara ao controle do tesoureiro da cidade. Neste mesmo ano Schmidt se casou com uma jovem parteira de 22 anos. Mas o revés volta a bater em sua porta. Sua esposa morre, ironicamente, durante o parto daquele que seria primeiro filho do casal, em 1838. No ano seguinte, 1839, Schmidt começa a trabalhar numa escola particular para moças da “boa sociedade”, instituição que é dirigida também por mulheres. Bem quisto por todos do lugar, ele leciona história e alemão durante cinco anos. Só sai, por conta própria, após a exposição de sua figura depois da publicação de O único.

Em 1841 a vida intelectual de Schmidt dá uma guinada. É neste ano que ele se aproxima do círculo de pensadores da esquerda hegeliana, “Os Livres” (Die Frein). O grupo que se encontrava numa cervejaria de Berlim, de Jacob Hippel, era frequentado por diversos homens insatisfeitos com as condições políticas e sociais da época, contra as quais lutavam relativamente em público. Havia diversidade e flutuação de assuntos no grupo, que estava longe de ser uma organização e recebia visitas sazonais de muitos intelectuais. Eles se reuniam em torno de Bruno Bauer, que era conhecido com um polêmico crítico da Bíblia. Muitos dos “membros” se envolviam em rixas internas no círculo intelectual da Alemanha. Bauer, por exemplo, foi demitido da Universidade de Bonn após publicar o artigo “A trombeta do Juízo Final contra Hegel, o ateu”.[1] Foi durante o contato com “Os Livres” que Schmidt foi apelidado de Max Stirner, que significa “Max, o testudo”. Depois disso ele passou a adotar como pseudônimo para seus escritos e também, com ele, assinou seu livro.

Mackay faz uma descrição física e da personalidade de Stirner. Era discreto, magro, se vestia simples, porém elegante como um professor. Era educado, atencioso e prestativo. Não tinha inimigos pessoais, mas também, por outro lado, não tinha nenhum amigo íntimo. Para o biógrafo ele foi o mais progressista de seu tempo, pois estava ao lado dos homens mais progressistas e, ainda assim, os criticava. “Um ser humano como poucos, feito para ser um homem livre entre os livres, e amaldiçoado por ser um elo na cadeia de senhores e escravos”, escreve John Henry Mackay (p. 89).

Ao contrário do biógrafo, Jean Barrué escreve que Stirner vivia uma vida dupla. E esta foi mesmo uma instituição discursiva através da qual a historiografia, sobretudo com Max Nettlau, construíra sua classificação com anarquista. Deste modo, cotidianamente, era Johann Schmidt, um professor exemplar e querido, um cidadão calmo, sereno, introvertido, sem muitos gostos especiais e que possuía um tom de voz baixo que pouco era usado. Nos escritos, parecia outro, não à toa usando o codinome Stirner, transformava-se num autor terrivelmente ácido e crítico, combativo e erudito (BARRUÉ, 2001, p. 33-34). Mas por mais que possamos achar muito diferente a descrição da vida e da personalidade de Stirner e seu personagem o “único” ou o “egoísta”, Mackay tenta coincidir os dois. Ele diz que Stirner dá vida ao seu próprio personagem. Não há nele contradições, é simples, puro e grande. Possui o conhecimento da autopreservação. Não tem desprezo nem ódio pelos outros, porém, tampouco amor ou piedade. Ele não pede amor ou admiração barulhenta de ninguém, mas é impossível não amá-lo, por vê-lo seguir suas leis e afirmar a si mesmo. É um ser simpático entre os diferentes (MACKAY, 2005, p. 90).

Depois de participar d’Os Livres Stirner passou a escrever para jornais da Alemanha. Mackay conta um total de 27 artigos que versavam sobre questões do cotidiano da época. Foi numa das reuniões d’Os Livres que Stirner conheceu aquela que viria a ser sua segunda esposa e para quem ele dedica O único: Marie Dänhardt. Companheiros de cervejas e discussões políticas, os dois se casaram em 1843 numa cerimônia bastante simples e peculiar. Contam que um amigo do casal foi quem “celebrou” o evento e nem alianças os dois tinham comprado. Improvisaram de última hora anéis de latão. Depois do casamento, Dänhardt herdou uma significativa quantia de dinheiro deixada pelo seu falecido pai há anos (p. 120-121).

Os anos que se seguiram foram bastante atribulados na vida de Stirner. A publicação de seu livro entre 1844 e 1845 gerou muitas consequências, positivas e negativas. Inicialmente houve um confisco da obra na Saxônia, região sede da editora. Contudo, o confisco foi suspenso dias depois pelo Ministério do Interior que ao julgar o caso expusera que o conteúdo do livro era muito absurdo para ser considerado perigoso. Mackay diz que isto foi intencionalmente planejado pelo autor, que usara esta estratégia para que a obra fosse circulada livremente. Entretanto, na Prússia, onde a censura era mais rígida, a obra foi banida, assim como ocorreu em outros Estados germânicos. O que não significava que ela não seria lida, porque, na época, as obras proibidas eram as mais procuradas.

O biógrafo aponta que a recepção inicial da obra foi sensacional. Era muito lida entre os jovens. Mas se sucedia a uma série de reações. Alguns o chamavam de gênio, outros simplesmente jogavam o livro no lixo após a leitura. Liberais, políticos, socialistas e humanistas ficaram fulos com a obra. A despeito da boa recepção e das várias críticas que apareceram, bem como as réplicas do autor, O único foi esquecido pouco tempo depois. Os ventos da revolução sopravam lá fora. E de alguma maneira dissiparam o período de sucesso de Stirner.

Desde 1846 seu casamento, frágil interiormente, começara a se deteriorar. O relacionamento com aquela que era considerada uma emancipada para época, uma possível companheira de jornada filosófica, teria como desfecho o abandono, depois de seguidas brigas e dívidas. Isto porque apesar de Dänhardt gozar de uma situação financeira estável, os dois, ao abrirem uma empresa de armazenamento e distribuição de leite, foram à falência devido à inexperiência e má-sorte na administração. Com a derrocada econômica, se separaram em 1846 e Marie foi embora para Londres. Já “Os Livres” cessaram os encontros em 1848.

Universidade de Berlim no século 19
Stirner continuou em Berlim. Mas pouco se sabe dele nesta época. Aos poucos foi se apagando; ficando isolado e se mudando sem parar de um lugar a outro, fugindo dos credores. Endividado e vivendo de trabalho comissionado, Stirner chegou a ser preso duas vezes em 1853, justamente por causa das dívidas. Tendo sua atividade jornalística encerrada em 1847, o filósofo publicara traduções de J.-B. Say, Adam Smith e Proudhon, e publicou História da Reação [1852], sendo que esta última tratava-se de uma compilação em dois volumes que passava longe da originalidade de O único. Em 1854 viveu em uma pensão onde cuidava de uma idosa, a proprietária do lugar, Sra. Weiss. Morou neste local até morrer tragicamente em 1856, por causa do agravamento de uma infecção no pescoço, um carbúnculo (p. 208). Solitário e auto-isolado do círculo social, apenas Bruno Bauer, Ludwig Buhl e algumas poucas pessoas foram ao seu funeral. Apesar de lamentar a morte breve de Stirner, Mackay diz que pelo menos este fato estancou seu sofrimento e sua luta contra a pobreza.

Referências:

BARRUÉ, Jean. Da educação. In: STIRNER, Max. O falso princípio da nossa educação. Tradução: Plínio Augusto Coelho. São Paulo: Editora Imaginário, 2001.
MACKAY, John Henry. Max Stirner: his life and his work. Translated from the third german edition by Hubert Kennedy. Concord-CA/USA: Peremptory Publications, 2005.


[1] Além de Bruno Bauer, os que mais frequentavam Os Livres eram: Edgar Bauer, irmão de Bruno; Ludwig Buhl (filósofo); Carl Friedrich (professor de ginástica); Koppen (professor ginasial); Eduard Mayern (filósofo, filólogo e professor de literatura); Friedrich Sass (jornalista); Herman Maren (jornalista); Adolf Rutemberg (cunhado de Bruno Bauer e colunista de jornais); Arthur Miller (editor de jornal); tenente Saint-Paul (censor enviado para observar a Gazeta Renana que virou amigo dos Frein); Ludwig Eichler (tradutor); Gustav Lipke (advogado e futuro membro do Reichtag). Este é o círculo mais assíduo. Já o círculo mais amplo, em que aparece inclusive Marx e Engels, é gigantesco, diz Mackay (p. 66).

terça-feira, 7 de abril de 2015

Liberdade recusada em Erich Fromm

Em O medo à liberdade, de 1941, o psicanalista alemão Erich Fromm (1900-1980) discute uma questão que continua extremamente atual. “Não haverá, igualmente, além de um desejo inato de liberdade, uma aspiração instintiva à submissão?”. A indagação de Fromm naquele período histórico, no meio da Segunda Guerra Mundial, estava intimamente relacionada à escalada do nazi-fascismo em Alemanha e Itália. Pensava-se que depois do fim da primeira grande guerra o mundo havia conquistado a vitória definitiva da liberdade, haja vista que as democracias existentes pareciam fortalecidas e outras novas estavam substituindo antigas monarquias. No entanto, o que se viu logo mais foi o surgimento de novos sistemas cuja essência negava o que os homens haviam criado em relação à liberdade; sobretudo porque as nascentes formas de governo do período histórico assumiram o controle de toda a vida social da população, submetendo todos a uma autoridade irresistível.

Por mais que alguns cogitassem, na época e até hoje, que todo este esquema do poder totalitário era produto de alguns sujeitos com mentes doentias, os quais seriam rapidamente retirados pela população de seus cargos; ou que tudo não passava de um truque de ilusão de indivíduos, como Hitler, que usavam sua astúcia para manipular as massas a fim de que estas assegurassem involuntariamente suas lideranças, pouco tempo depois se percebeu que a coisa era mais grave. Segundo Froom:

“Fomos compelidos a reconhecer que milhões de alemães estavam ansiosos por abrir mão de sua liberdade do mesmo modo que seus pais o haviam estado por lutar por ela; que, em vez de desejarem a liberdade, eles buscavam meios de fugir dela; que outros milhões eram indiferentes e não julgavam valer a pena lutar e morrer em defesa da liberdade. Reconhecemos, outrossim, que a crise da democracia não é um problema peculiar à Itália ou à Alemanha, mas algo com que defronta todo Estado moderno. Tampouco importa quais são os símbolos escolhidos pelos inimigos da liberdade humana: a liberdade não se vê menos ameaçada quando é atacada em nome do antifascismo do que no do fascismo indisfarçado. Esta verdade foi tão convincentemente formulada por John Dewey que recorro a suas palavras: ‘A ameaça mais grave à nossa democracia não é a existência de Estados totalitários estrangeiros: é a existência, em nossas atitudes pessoais e em nossas instituições, das condições em que países estrangeiros asseguraram a vitória da autoridade externa, disciplina, uniformidade e dependência do chefe. O campo de batalha, por isso, também se acha aqui – dentro de nós mesmos e de nossas instituições’” (FROMM, 1977, p. 15).

Erich Fromm temia que a insignificância e a impotência dos indivíduos em sua época propiciassem novos fascismos e nazismos. Pautando sua análise através da psicologia, Fromm aponta que quando se encontra num estado de insegurança e solidão o indivíduo utiliza pelo menos dois mecanismos principais de fuga a fim de restabelecer os “vínculos primários”: a submissão e o automatismo (conformismo). Os vínculos primários são aqueles que dão conforto e segurança à criança antes de ela separar-se simbolicamente dos pais e da natureza, ou seja, antes de reconhecer-se como indivíduo apartado e existir como ser humano.

Fromm vincula, portanto, a existência humana à liberdade. Não há uma sem a outra. A existência humana se dá quando as ações descolam sob um certo limite dos instintos e a natureza vai perdendo a coerção que exercia sobre o sujeito. Esta significa “liberdade de”, a saber, uma liberdade negativa, no sentido de independência das coisas e dos seres (p. 35-36). É claro que a tentativa de voltar a esta condição é impossível, uma vez completo o processo de individuação. Contudo, em ação impulsiva, o indivíduo inconscientemente prefere acreditar nesta autoilusão – o que não resolve seus problemas, porém, pelo menos mitiga uma angústia insuportável.

O automatismo ou “conformismo de autômatos” é o mecanismo de fuga em que o indivíduo deixa de ser ele mesmo. É a saída mais recorrida pelos sujeitos modernos para se protegerem da solidão e impotência, aponta Fromm. O indivíduo adota inteiramente “o tipo de personalidade que lhe é oferecido pelos padrões culturais e, por conseguinte, torna-se exatamente como todos os demais são e como estes esperam que ele seja”. Desta forma, assim como um animal que imita o ambiente para se proteger do perigo externo, o indivíduo faz com que o contraste entre ele e o mundo seja suprimido. O “autômato” perde sua individualidade, bem como sua liberdade, em prol de uma suposta segurança (p. 150).

De modo semelhante ao automatismo, o mecanismo de fuga da liberdade designado como “submissão” possui a tendência de renunciar à independência do eu individual para fundi-lo com algo ou alguém de acordo com o objetivo que visa garantir a força que aquele não possui. Este processo identificado como um tipo de masoquismo tem causa em sentimentos de inferioridade, impotência e insignificância individual. As análises psicológicas advertem que apesar destas pessoas se queixarem, dizendo querer a independência, inconscientemente existe uma força interior muito maior alimentando o seu sentimento de insignificância e fraqueza. Sentem-se fracas e incapazes e recusam o comando de suas próprias vidas, delegando esta função a outros, pois se vêem sobremaneira dependentes de pessoas alheias, de instituições ou da natureza (p. 119).

Em diálogo com Fromm, podemos ver a recusa da liberdade e da autonomia pelos indivíduos contemporâneos em várias situações. Diria que, aliás, hoje há um sincretismo destes dois mecanismos, um acompanhando circularmente o outro. Existe uma necessidade de não assumir responsabilidades, se apoiando em alguma autoridade, fazendo exatamente o que esta ordena. E quando não há uma “voz imperativa”, a segurança do automatismo dá lugar a um micro desespero indisfarçado. Meses atrás um ex-professor meu, em forma de desabafo, resumiu bem tal aspecto no Facebook. Ele escreveu o seguinte:

“Chegando ao fim de mais um semestre [...], renovo, infelizmente, a minha decepção com o que a Universidade tem se tornado cada vez mais: um colégio para adultos infantilizados. Eu também era um “adulto infantil” na Universidade, na qual entrei com 17 anos, mas eu sentia que a Universidade me “forçava” a amadurecer, a tomar uma atitude mais responsável e intelectualmente mais autônoma. Hoje, os alunos parecem imunes aos incentivos à autonomia, resistem em assumirem responsabilidades (sobre si mesmos e a sua formação...) e tudo o que eles esperam do professor é a exposição de um conhecimento confortável, acessível ao seu entendimento imediato, ainda que seja simplório, enganoso e vulgar. Talvez sempre tenha sido assim e eu é que esteja nostálgico ou cansado. Mas é ruim. Não vejo a hora de acabar o semestre. Já gostei de dar aulas. Hoje, é mais um dos muitos ossos do ofício”.

Seguiu-se ao post uma série de comentários de “amigos virtuais” do professor. Ousaram questionar (e alguns afirmaram) que isto se dava por conta da condição social e escolar dos alunos do curso de História (sendo a maioria identificada pelos interlocutores como pertencente a famílias de baixa-renda e egressa de escolas públicas). Porém, o professor ressaltou que em seu entender não adviria daí o problema, em razão de ele lecionar para turmas de outras graduações e lidar com situação semelhante ou até mais grave.

Erich Fromm nos apresenta uma avaliação do caráter ambíguo e contraditório da liberdade que pode ser interessante para pensarmos uma possível “saída” deste estado de coisas. Uso aqui o termo “saída” para remeter o termo (Ausgang) que Kant procurara encontrar (segundo a leitura de Foucault) ao se propor reflexionar sobre o “esclarecimento”.

Enfim, Fromm aponta que, a despeito da comemoração referente à superação de “velhos inimigos da liberdade”, os sujeitos modernos têm se preocupado pouco com o surgimento de outros inimigos. Estes não seriam essencialmente compostos por restrições externas, todavia, estariam ligados a fatores internos que “tolhem a realização total da liberdade de personalidade”. Pode-se citar vários exemplos. Por um lado a liberdade de culto como vitória sobre o Estado e Igreja; por outro, com ela, surge a incapacidade de acreditar e ter fé em qualquer coisa que não seja demonstrável pela ciência (quando muito!). Por um lado, a conquista da liberdade de expressão, mote do liberalismo político; por outro, qual é a importância de querer que ninguém intervenha naquilo que expresso, se o que expresso não é diferente daquilo que os outros pensam e dizem? Ou seja, o indivíduo moderno (ou pós-moderno, como queiram) não adquiriu “a capacidade de pensar originalmente”. Se, por um lado, nos orgulhamos da libertação de autoridades externas como reis e papas; por outro, menosprezamos o papel das autoridades anônimas, como a da opinião pública e do “senso comum”, às quais nos adequamos, por exemplo, quando adquirimos produtos da moda, a fim de satisfazer as expectativas das pessoas sobre nós. Assim completa Fromm:

“[...] estamos fascinados pelo aumento da liberdade de poderes fora de nós e cegos para as nossas restrições, compulsões e medos interiores, que tendem a solapar o significado das vitórias alcançadas pela liberdade contra seus inimigos tradicionais. [...] Esquecemos que, apesar de cada uma das liberdades já conquistadas ter de ser defendida com o máximo vigor, o problema da liberdade não é só quantitativo, mas qualitativo; que só temos de conservar e aumentar a liberdade tradicional, porém que temos que obter um novo tipo de liberdade, aquela que nos habilita a realizar nosso próprio eu individual, a ter fé neste eu e na vida” (FROMM, 1977, p. 92).

Referências:

FROMM, Erich. O medo à liberdade. Tradução de Octavio Alves Velho. 10ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
 
Para mais, leia: Modernidade e Esclarecimento.
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