quarta-feira, 7 de maio de 2014

A memória em Seixas (parte II): propostas para além da historiografia do silêncio

3. Como foi sinalizada em uma passagem da primeira parte deste escrito [clique aqui!], Seixas traz de volta a teoria filosófica que comportava as chamadas “categorias arcaicas da memória”, além do estatuto conhecimento, também o afeto e a ação. Entretanto, em vez de um transplante da tradição pré-clássica grega, a autora atualizará a compreensão sobre a natureza desta memória em direção aos estudos históricos. Na busca por uma construção reflexiva transdisciplinar (SEIXAS, 2002b, p. 45), essa atualização passará diretamente pelo filósofo Henri Bergson (1859-1941) e pelo literato Marcel Proust (1871-1922).

Segundo Seixas (2002a, p. 64), em Bergson a memória serve mais para agir do que para conhecer. A memória se desdobra na medida em que há alguma ação interessada ou para cumprir uma utilidade no presente. Essa escolha de uma lembrança em vez de outra é, portanto, consciente. A memória pode contrair num só lance uma pluralidade de momentos. Entretanto, quem faz a atualização da memória no presente é a percepção. E, apesar da consciência atuar nesse processo, não é a inteligência que ativa a memória mais profunda, porém a intuição – característica que demonstra uma “retomada” da sensibilidade nos planos centrais da memória. Em vez de usar a inteligência por meio da memória-cognitiva, o sujeito usa a intuição como a faculdade capaz de perceber o tempo real: a duração. Aqui já é possível notar a disparidade entre a noção de tempo da filosofia bergsoniana e a da historiografia que, na maioria dos casos, trabalha com a concepção de tempo cronológico. É este mesmo tipo de tempo que Bergson diz ser superficial, ligado a um processo mecânico e habitual de memória: a memória dos fatos sucessivos.

A compreensão de Seixas (2002a, p. 67-68) sobre Proust revela muitos pontos de encontro entre ele e Bergson, mas também algumas dessemelhanças. A memória para Proust é ritualística e mítica. Ela se mostra e se esconde de acordo com uma dinâmica particular. Supõe uma renúncia intelectual por parte do sujeito da lembrança e depende do acaso para acontecer. No lugar das “percepções conscientes” de Bergson, são as sensações, as impressões e os afetos, através do contato com os objetos, que desencadeiam os atos de memória. E ela nunca vem em bloco, como pressupõe Bergson, mas como um caleidoscópio. Opostamente à historiografia, sobretudo às noções de memória historicizada e de lugares de memória externos, em Proust, a memória é subjetiva, involuntária, múltipla, indeterminada, intermitente e descontínua. Em vez de preencher lacunas no presente ou construir continuidades, a memória proustiana, se assim é possível chamá-la, supõe as lacunas e se constrói com elas; não soma, nem subtrai, mas condensa (idem, p. 72). Ainda que a totalidade do passado esteja perdida, assim como a memória integral, o ato involuntário de lembrar-se faz retornar as tonalidades emocionais e a carga afetiva de outrora. Por outro lado, a memória que é voluntária perde toda a dimensão descontínua da vida e das ações dos homens (idem, p. 74). Mais do que isto, cabe salientar que, tanto em Bergson como em Proust, a memória profunda realiza uma síntese do passado no presente, atualizando-o, lançando-se ao futuro; ela é mais projetiva do que retrospectiva.

Após apresentar as contribuições dos pensadores, Seixas afirma que a dimensão afetiva, imaginária, involuntária e descontínua da memória tem sido excluída pelas historiografias contemporâneas (sobretudo para garantir sua cientificidade – proposta que para a autora tinha um significado em determinada circunstância histórica, mas agora não mais) e, por isso, propõe a incorporação destes aspectos nos estudos históricos. No caso da historiografia empenhada com os projetos sociais do futuro, é possível partir da compreensão de que o lugar antes ocupado pelas utopias concede vez a determinado tipo de memória que, interpolando as linhas de temporalidade, atualiza o presente através do passado e projeta luzes no futuro (SEIXAS, 2001b, p. 55). Outra proposta é o rompimento com algumas dicotomias: entre a memória irrupção ou reconstrução do passado, trata-se de compreendê-la como ambas, substituindo o “ou” pelo “e”; o mesmo se aplica aos pares emoção/consciência, fora/dentro, real/irreal, coletivo/individual; e, por último, pensar o afetivo como parte da estrutura consciente, não mais como estágio primário (SEIXAS, 2001a, p. 105-6).

4. Faz-se necessário neste ponto destacar a importância do trabalho de Seixas sobre a teoria da memória e sua contribuição para atualização do conceito nos estudos históricos. Sobretudo porque a historiografia preocupada, ainda hoje, em garantir uma legitimidade objetiva e científica acabou por excluir de suas pesquisas aspectos, categorias e noções que considerava abstratas, subjetivas, sensíveis. É possível entender este empreendimento do saber como uma recusa àquilo que as operações intelectuais modernas não conseguiam captar, pois eram (e continuam sendo) de difícil apreensão pelos dispositivos científicos usuais. No entanto, cabe aqui fazer algumas considerações para principiar uma discussão sobre a proposta teórica da memória que Seixas endereça a historiografia, examinando seus limites e possibilidades.

A proposta de Seixas não se trata da substituição de um determinado estatuto da memória por outro, ou seja, a questão não é excluir as memórias cognitiva, racional, voluntária, contínua, reconstrutora, objetiva e coletiva para dar lugar às memórias afetiva, ética, imaginária, involuntária, descontínua, eruptiva, subjetiva e individual, tampouco estabelecer uma hierarquia de importância entre elas (o que parece ocorrer tanto em Halbwachs, como em Bergson e Proust – cada qual atribuindo maior importância a um estatuto ou outro); porém, agregar às pesquisas e reflexões históricas todas estas dimensões da memória, sem necessariamente construir uma síntese ou uma harmonia entre elas, todavia compreendendo seus conflitos e antagonismos, suas alianças e agenciamentos no presente. Preocupando-se, sobretudo, em considerar as descontinuidades e temporalidades nem sempre coincidentes entre memória e história.

Entretanto, diante disso, a questão que se apresenta é a seguinte: é possível incorporar/integrar os aspectos sensíveis, imaginários e descontínuos da memória dentro de uma pesquisa/narrativa que se utiliza de procedimentos notadamente racionais, críticos, estéreis, contínuos e generalizantes, pois herdados de uma tradição filosófica vazada nestes pressupostos? Tal questionamento pode parecer embebido no mesmo racionalismo que pensa o mundo por “dicotomias” (do qual a autora pretende escapar), porém se descartássemos as “dicotomias” em absoluto, poderíamos afirmar, por exemplo, que as operações da epistemologia moderna não excluíram os sentimentos, as descontinuidades e os irracionalismos, mas apenas não os explicitaram, tendo em vista que estes já estavam integrados dentro da tradição filosófica. E, neste caso, nada precisaríamos escrever para atentar os pesquisadores sobre a necessidade de incorporar algo já incorporado.

Portanto, será que os dispositivos e os enunciados dos quais dispomos nos campos do saber humano (científicos) dão conta de abarcar aspectos que, constantemente, escapam da linguagem escrita e até da oralidade?

Através desta linha de raciocínio, poderíamos enxergar inclusive um ponto de encontro entre Nora, Bergson e Proust. Quando Nora nota a ausência da memória (falta de “quadros sociais” sólidos) e sua “infeliz” substituição pela “memória historicizada”, não parece estar em desacordo do que Bergson e Proust afirmam a respeito do que seria uma memória mais profunda, aquela impossível de ser percorrida por uma linguagem materializada, pois intuitiva ou afetiva e casual. Sendo assim, a memória escrita, pensada e refletida pelo historiador não só não teria o mesmo estatuto do tipo de memória que é seu objeto de pesquisa, mas também inviabilizaria a compreensão de seu leitor, forçado a atravessar uma ponte de gelo entre dois pontos no diâmetro de um vulcão em iminente erupção. Isto, de certa maneira, nos forçaria a uma historiografia do silêncio – como aquela que por não conseguir falar sobre o esquecimento se cala sobre ele.

Visualizo pelo menos duas maneiras de escapar deste embaraço. A primeira foi formulada por Giorgio Agamben (2008) em seu trabalho histórico-filosófico sobre Auschwitz. Na impossibilidade do testemunho integral da catástrofe dos campos de concentração e extermínio nazista, devido a vários motivos – o assassinato na câmara de gás daqueles que viveram a experiência até o fundo/limite; a perda da linguagem, e da vida cultural (bios), por aqueles que experimentaram o mais alto estado de degradação nos campos; ou a ineficácia da linguagem falada e escrita ao narrar o trauma ali vivido, fato que ficou evidenciado no desapontamento de Primo Levi, um dos sobreviventes, quando após sair dos Lager tentava em vão dar conta de transmitir por meio de diálogos, depoimentos, relatos e livros o que viu, ouviu e sentiu em Auschwitz –, Agambem diz que o testemunho deste acontecimento só pode ser dado através de um “narrar o inenarrável”, melhor dizendo, de falar sobre aquilo que é impossível de se falar, testemunhando sobre a impossibilidade de se testemunhar (2008, p. 43). As mesmas considerações poderiam ser estendidas a uma teoria da memória na escrita da história contemporânea. Na impossibilidade de incorporar as afetividades e descontinuidades numa narrativa científica/acadêmica, o trabalho desta seria, neste ponto, relatar sobre a impossibilidade do relato da memória-afetiva, afastando o esquecimento e a inefabilidade como fez Agamben.

Outra forma seria transformar a escrita da história em uma prática artístico-literária de produzir conhecimento, porém, para isso seria preciso recusar os antigos procedimentos científicos e seus dispositivos de enredamento do texto. Bergson e Proust parecem ter notado essa incapacidade da ciência e da inteligência em exprimir determinados tipos de linguagens e temporalidades. Isso fica evidenciado quando Bergson faz ressalvas a respeito da consciência racionalizante (inclusa a linguagem escrita; incapaz, para ele, de apreender o movimento, a duração), quando Proust utiliza a arte literária para romper com os códigos de linguagem normativos e quando ambos insurgem contra a superficialidade da “memória intelectual”.

No entanto, é preciso salientar que a eficiência desta atividade dependerá de uma espécie de literatura, ligada a um determinado regime de arte, o qual Jacques Rancière nomeia de estético.[1] Esta literatura, nascida na modernidade, em vez de se adequar à tradição das belas-letras/artes (retórica, poética e gramática), é o que desnorteia os saberes disciplinares destas, não coincidindo com o regime ético ou poético da arte (RANCIÈRE, 1995, p. 26). Isto porque os dois últimos regimes possuem regras, convenções, hierarquizações e procedimentos padronizados e universalistas que serviram como fundamentos para muitas ciências e disciplinas modernas, incluindo a historiografia.[2] Esta forma de literatura, a estética, tem um tipo específico de linguagem porque ela joga contra a própria normatividade que é intrínseca à linguagem, contra suas convenções e seus limites. Trata-se de uma experiência e uma prática autônoma da linguagem. Assim, a literatura do regime estético constrói um mundo e uma realidade própria que provoca no leitor uma transformação na maneira de sentir/ver/enunciar as palavras, as coisas e os seres. Ao desestabilizar a linha que divide o sonho da realidade, ela apresenta a inexistência da fronteira onde termina o real e começa a ficção, e proporciona a compreensão de que o primeiro se institui com elementos do último (RANCIÈRE, 1995, p. 27).

Sob esse viés, é possível construir um projeto audacioso para a escrita da história, e que talvez possa dar conta da mediação inteligível da memória em todos os seus aspectos. O leitor seria então jogado nesse mundo onde sua intuição afetiva estaria aguçada pelas sensações imagéticas despertadas pela arte literário-histórica. Neste ponto, as linhas que dividem as disciplinas poderiam ser suprimidas, a “transdisciplinaridade” seria não mais um modo de trânsito entre disciplinas consolidadas e definidas, mas uma estratégia de desconstrução das gavetas que separam as maneiras de compreender a realidade.

No caminho que leva a este modo de trabalho capaz de inscrever a multiplicidade das memórias na escrita da história – e diferentemente de muitos historiadores que tratam a literatura como campo menor ou usam-na como documento semi-morto –, um primeiro passo parece ter sido dado por Seixas, na medida em que a autora trabalha com a literatura de Proust sem neutralizar o potencial de seus enunciados, pensando-os tão reais quanto os filosóficos e históricos.

Referências:

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Paulo: Boitempo, 2008.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.
RANCIÈRE, Jacques. A literatura impensável. In:______. Políticas da escrita. São Paulo: Editora 34, 1995, p. 25-45.
SEIXAS, Jacy. Halbwachs e a memória-reconstrução do passado: memória coletiva e história. História, São Paulo, n. 20, p. 93-108, 2001a.
SEIXAS, Jacy. Os campos (in)elásticos da memória: reflexões sobre a memória histórica. In: SEIXAS, Jacy; BRESCIANI, Maria Stella; BREPOHL, Marion (Orgs.). Razão e paixão na política. Brasília: Editora da UnB, 2002a, p. 59-77.
SEIXAS, Jacy. Os tempos da memória: (des)continuidade e projeção. Uma reflexão (in)atual para a história? Projeto História: revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, n. 24, p. 43-64, jun., 2002b.
SEIXAS, Jacy. Percursos de memórias em terras de histórias: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (Orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2001b, p. 37-59.
WHITE, Hayden. Meta-história: A imaginação histórica do século XIX. São Paulo: EDUSP, 1995.

[1] O regime estético da arte “não se faz mais por uma distinção no interior das maneiras de fazer, mas pela distinção de um modo de ser sensível próprio aos produtos da arte. A palavra ‘estética’ não remete a uma teoria da sensibilidade, de gosto ou do prazer dos amadores de arte. Remete, propriamente, ao modo de ser específico daquilo que pertence à arte, ao modo de ser de seus objetos. [...] as coisas são identificadas por pertencerem a um regime específico do sensível. Esse sensível [...] é habitado pela potência do pensamento que se tornou estranho a si mesmo: produto idêntico ao não-produto, saber transformado em não-saber, logos idêntico a um pathos, intenção do inintencional etc.” (RANCIÈRE, 2005, p. 32).
[2] Hayden White é um dos pensadores que afirmam que a história/historiografia é uma forma de poética (cf. WHITE, 1995).

A memória em Seixas (parte I): dos gregos a Halbwachs

Publicarei aqui o trabalho produzido ao término da disciplina História e Memória, lecionada pela professora Jacy Seixas, pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFU, em 2013. A proposta apresentada por Seixas consistia em que os alunos dos cursos de mestrado e doutorado escrevessem um trabalho sobre autores ou discussões realizadas durante a disciplina. Sendo assim, escrevi “um trabalho sobre os trabalhos de Seixas” relativos à temática da memória. Na avaliação, pude discutir com a própria autora as possíveis falhas de interpretação (agora já sanadas) e apontamentos que fiz a seu trabalho. (Segredo: um livro de Jacy, com seus artigos sobre memória compilados e atualizados, está por vir.) Dividirei o trabalho aqui em dois posts.

***

1. A recente pesquisa da professora e historiadora brasileira Jacy Seixas cumpre com a tentativa de realizar um exercício intelectual extremamente importante ao ofício de historiar: a reflexão teórica sobre seu próprio trabalho. Visto por muitos profissionais da disciplina histórica como um papel que deve ser ocupado por filósofos, ainda tem se compreendido a função de pensar, analisar e problematizar as pesquisas e as narrativas historiográficas como, no máximo, secundária ao trabalho do historiador. Tal pensamento colocado em prática pode acarretar que o historiador fique refém dos próprios procedimentos e, no limite extremo, recuse o diálogo com outros campos do saber.

Tendo como baliza os contatos entre a história e demais áreas do saber, sobretudo sociologia, filosofia e literatura, o trabalho de Seixas busca compreender a construção da memória histórica através dos diálogos (das práticas e dos discursos) a partir e contra os quais este conceito foi formulado e, assim, refletir sobre suas características, aferindo seus limites e propondo a incorporação de novos velhos aspectos. Em interlocução com a expressão “vergonha da memória”, formulada por Vidal-Naquet para descrever a abnegação dos historiadores à reflexão sobre a memória, a autora constata que: “A temática da memória converteu-se, nas duas últimas décadas, em uma espécie de moda entre os historiadores ocidentais”. Porém, a despeito disso, “muito se operacionaliza a memória e pouquíssimo se teoriza sobre ela; afinal, qual o estatuto da memória especificamente histórica... [?]” (SEIXAS, 2000, p. 76; 77).

O texto aqui presente objetiva compreender e descrever os pontos principais do percurso intelectual inscrito nos trabalhos produzidos por Jacy Seixas[1] sobre a relação entre memória e história, focando especialmente na maneira como é apreendido e problematizado o conceito de memória. Posteriormente à análise, pretende-se levantar breves indagações com o fim de abrir uma discussão acerca dos limites e possibilidades da proposta conceitual de memória, apresentada pela autora, para os estudos históricos.

2. Intentando construir uma genealogia da memória “historiográfica”, Seixas (2000) retorna aos escritos dos gregos antigos. Neles, a autora descortina uma inflexão, uma virada da compreensão que marca o nascimento de um determinado tipo de memória, ou um estatuto que se apossa e se hegemoniza sobre a memória, categorizando-a sob uma certa natureza e excluindo outras características que ela possuía anteriormente. Acompanhemos!

Em Hesíodo, por volta do século 6 a.C., a memória não detém ainda uma ligação necessária com a verdade, ela era mítica, podendo ser verdadeira ou falsa. As chamadas categorias arcaicas da memória possuem vetores plurais, há, por exemplo, a memória-ação e a memória-afetiva. A memória e seu par, o esquecimento[2] (ainda não denegado), quando voltados à ação remetem a “uma dimensão coletiva das atividades humanas (ou divinas), articulando passado, presente e futuro” (SEIXAS, 2000, p. 80); abarcando um conteúdo ético, este tipo de memória visa prescrever comportamentos, sentimentos e atitudes. Já a memória-afetiva reporta-se às emoções inscritas em todo ato de memória, isto porque o “lembrar” nunca vem totalmente isolado, mas traz a sensação ou sentimento da experiência já vivida. Atenção: veremos mais adiante que são, sobretudo, esses dois aspectos ou estatutos da memória, ou seja, ação e afeto, que serão reatualizados por Seixas através da interlocução com pensadores modernos. Por enquanto cabe colocar que, em detrimento destes dois estatutos da memória, um outro reinará por toda a tradição filosófica ocidental. Qual é este?

A partir da chamada Época Clássica na Grécia antiga, sobretudo nos escritos de Píndaro, a memória passará a vincular-se estreitamente à verdade, privilegiando, então, a dimensão da memória-conhecimento. Com efeito, se até aquele momento o esquecimento não era uma divindade negativa ou funesta, agora ele será estigmatizado e marginalizado como aquilo que é o oposto da memória cognitiva (idem, p. 81), como aquilo contra o qual se luta para a memória-conhecimento perseverar. Doravante, a noção de história grega segue o mesmo caminho, aparta-se da acepção mítica para reter-se à memória como conhecimento do passado. Nasce um tipo de história para “salvar a memória dos acontecimentos memoráveis”, portanto, inaugura-se uma disputa incessante contra o esquecimento dos “fatos importantes”. Esta é uma prática historiográfica que encontramos em Tucídides, por exemplo. Ainda que Tucídides tenha consideráveis desconfianças sobre a veracidade da memória, “inicia-se aqui a longa tradição que colocará o esquecimento ao lado da loucura e da perda de si; e a memória, ao lado da sabedoria, da reflexão, do conhecimento e da verdade” (SEIXAS, 2000, p. 83). Tradição esta que percorrera desde filósofos antigos, como Aristóteles, para o qual lembrar é reencontrar algo de forma voluntária através do esforço do intelecto, até filósofos do medievo, como Santo Agostinho, para o qual lembrar é a condição de toda inteligibilidade. Mas se há diversos pensadores ao longo de milênios que corroboram o reinado da memória-conhecimento, é mesmo a partir, em específico, de um autor/ator da modernidade que a historiografia encontrará, de acordo com Seixas, seu lócus discursivo instituidor: o sociólogo Maurice Halbwachs (1877-1945; foto acima).

Segundo Seixas (2001a), a historiografia contemporânea da memória sugou no solo fértil das obras de Halbwachs os líquidos epistêmicos que nutrem as diversas concepções que se enraizaram na escrita da história. Pode-se aqui apresentar brevemente algumas delas: a oposição entre memória e história – que, operacionalmente, submete a primeira aos procedimentos teóricos e metodológicos da segunda; a exclusão da imaginação e da afetividade na pesquisa/narrativa histórica, destinando ambas ao campo da ficção e do irreal; o entendimento de que a memória é uma reconstrução do passado e jamais uma erupção deste; e o conceito de “quadros sociais” do presente, que passa a ser intrínseco à memória, principalmente para compreendê-la em sua relação com a sociedade – fundamental à noção de memória social. 

Interessado nas questões e projetos da classe operária do começo do século 20 e seguindo nítida inspiração de seu ex-professor Émile Durkheim, Maurice Halbwachs constrói reflexões teóricas que atam memória e sociedade (idem, p. 95). Esta tarefa é desenvolvida a partir de um diálogo que o sociólogo estabelece com pensadores de outros campos do saber, isto é, contra os postulados dos mesmos. Seus interlocutores contemporâneos são Freud, Bergson e Proust, respectivamente figuras intelectuais da psicologia, filosofia e literatura do início do século passado. Estes dois últimos autores serão os principais eixos discursivos a partir dos quais Seixas problematizará as noções arraigadas da memória na história. Mas antes vejamos as proposições que Seixas destaca de Halbwachs no debate contra seus interlocutores.

A noção de memória social e coletiva é, por exemplo, definida a partir de uma oposição aos sonhos – um dos objetos de pesquisa de Freud – e de uma assimilação ao conceito de “quadros sociais da memória”. Em relação à memória dos sonhos, seu conteúdo (a imaginação e os sentimentos), sua linguagem (o fragmentário e o efêmero), seu tempo (a descontinuidade) e seu sujeito (o indivíduo) são negados nas operações intelectuais de Halbwachs por conta de suas inconsistências sociais, faltando-lhes o encadeamento dos fatos reais (SEIXAS, 2001a, p. 99). Para o sociólogo, os sonhos não têm uma realidade; ao contrário da memória que, por outro lado, necessita de uma materialidade através da qual os ganchos da lembrança se lançam e se apóiam, ou seja, em conexões com os quadros sociais que estão ausentes ou diluídos nos sonhos, conforme Halbwachs. 

Ao postular que a memória vem do exterior, do social, o sociólogo deixa claro o privilégio que dá ao sujeito coletivo em detrimento do sujeito individual (este caro a Bergson). Além disso, o autor não aceita que uma memória possa reviver o passado, e tampouco que ela seja uma erupção do passado desencadeada por um tipo de reação sensível no presente (como Proust faz aparecer em suas imagens literárias e Bergson coloca no ponto inicial de sua reflexão em Matéria e memória). Mais do que isso, para o sociólogo, a memória vem sempre do presente ancorada no que designa como “quadros sociais”; o desaparecimento ou a transformação destes quadros leva ao fenômeno do esquecimento – ausência de memória. Enquanto a memória é uma faculdade racional e social, a imaginação é individual, afetiva e fictícia, pois não se liga aos quadros sociais. Há aqui todo um investimento na memória-conhecimento. Ainda assim, a memória-afetiva não é apagada, porém a afetividade surge no momento mesmo de memória, no encontro entre o individual e o coletivo (idem, p. 103). É ela que, pelo afeto, colore com uma cor do presente a lembrança de um acontecimento do passado que não necessariamente continha a mesma cor. Quer dizer, para Halbwachs não vivemos novamente o passado ao lembrá-lo, como apontam determinados depoimentos de sobreviventes de experiências traumáticas,[3] mas sim é criada pelo presente uma espécie de ilusão de que os revivemos. Halbwachs insiste no fato de que não é possível lembrar os “afetos” experimentados no passado: assim podemos lembrar com alegria ou indiferença o trauma outrora vivido. Para Proust é aqui que se situa o “nó” da questão existencial: a memória voluntária é sim capaz de operar essa depuração, no entanto, a memória involuntária pode irromper e “trazer” o afeto experimentado, mesmo que à revelia de nossa vontade consciente. 


Jacy Seixas
Ao abordar a historiografia contemporânea, Seixas aponta Pierre Nora como um dos herdeiros da teoria da memória halbwachsiana, especialmente da concepção que opõem memória e história. Tanto para Halbwachs como para Nora, entre memória e história há uma oposição total. A primeira é uma faculdade socialmente desencadeada, uma atividade natural, espontânea, desinteressada e seletiva, enquanto a segunda é uma operação intelectual permeada por procedimentos críticos, além de ser politicamente interessada. Segundo Nora, a memória não existe mais, o que temos atualmente são memórias historicizadas. O conceito “lugares de memória” do autor evidencia o exílio da memória (SEIXAS, 2001b, p. 41). A reflexão revela a dominação que a história impõe sobre a memória, ao historicizá-la, dando-lhe uma conotação eminentemente racionalizante, política e voluntária, negligenciando seus outros aspectos. Mas esta não é uma característica restrita à historiografia francesa. Esse mesmo pressuposto é compartilhado pela historiografia anglo-saxônica (berço da história oral) que, apesar de prescindir da oposição total entre memória e história, coloca a memória na mesma armadilha ao submetê-la à história, partindo de uma coincidência entre as duas. Isto é, para a historiografia anglo-saxônica (como Paul Thompson), controlar a memória é controlar o passado e o presente; esta responde a demandas e a interesses precisos (idem, p. 42-3).

Neste sentido, Seixas diagnostica dois “efeitos” advindos da apropriação da memória pela história: 1º) a operacionalidade e a produtividade da memória; 2ª) a vulnerabilidade teórica da memória. Nas palavras da autora, o primeiro fenômeno seria:

“Responsável pelo resgate de experiências marginais ou historicamente traumáticas, localizadas fora das fronteiras ou na periferia da história oficial ou dominante. Responsável, igualmente, por um debate historiográfico que teve como desdobramento o aparecimento de novas noções, como as de “memórias subterrâneas”, “lembranças dissidentes”, “lembranças proibidas”, “memórias enquadradas”, “memórias silenciadas”, mas não esquecidas, e outras que buscam dar conta da complexidade dos fenômenos contemporâneos da memória” (SEIXAS, 2001b, p. 43).

Sobre o segundo efeito, ocorre que ao coincidir ou opor radicalmente memória e história:

“[...] não se discutem finalmente os mecanismos de produção e reprodução da memória, seja ela coletiva ou histórica. Apenas se designam algumas de suas características, definidas em relação ao próprio paradigma histórico, apresentado em toda sua positividade e voracidade. Tudo se passa como se a memória só existisse teoricamente sob os refletores da própria história, postura que não resiste a uma observação mais atenta e descentrada” (SEIXAS, 2001b, p. 43).

Ao contatar estes limites na teoria da memória em que a historiografia se apóia, Seixas proporá a incorporação da dimensão da memória que é permeada pela afetividade e sensibilidade, excitada numa irrupção pelo involuntário e empreendida com a função criativa de atualizar o passado em direção ao futuro. Para tal, a historiadora se apoiará em trabalhos da filosofia e da literatura; notadamente em Bachelard, Nietzsche, Bergson e Proust, com ênfase para os dois últimos.


Referências:

LEVI, Primo. A memória da ofensa. In:______. Os afogados e os sobreviventes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 09-16.
SEIXAS, Jacy. Comemorar entre memória e esquecimento: reflexões sobre a memória histórica. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 32, p. 75-95, jan./jun., 2000.
SEIXAS, Jacy. Halbwachs e a memória-reconstrução do passado: memória coletiva e história. História, São Paulo, n. 20, p. 93-108, 2001a.
SEIXAS, Jacy. Percursos de memórias em terras de histórias: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (Orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2001b, p. 37-59.
SEIXAS, Jacy. Tênues fronteiras de memórias e esquecimentos: a imagem do brasileiro jecamacunaímico. In: GUTIÉRREZ, Horácio; NAXARA, Márcia; LOPES, Maria Aparecida (orgs.). Fronteiras: paisagens, personagens, identidades. Franca: UNESP; São Paulo: Olho D’Água, 2003, p. 161-183.

[1] Especificamente voltadas às reflexões teóricas, há um total de pelo menos cinco artigos, publicados como capítulos de livros organizados ou como artigos em revistas acadêmicas, que compõem esse conjunto de reflexões, datados entre os anos 2000 a 2003. 
[2] Cabe mencionar, aqui, que para Seixas falar em memória é falar em esquecimento. Há uma articulação entre eles e até um complemento entre um e outro, um equilíbrio e um conflito, nunca síntese, oposição binária ou exclusão de um pelo outro. Assim, a autora escreve: “[...] entre esquecimento e memória tece-se uma cumplicidade que as tornam dimensões impensáveis uma sem a outra; são inseparáveis em sua tensa relação” (SEIXAS, 2000, p. 89). O interesse da autora sobre o esquecimento levou-a a investigar sobre uma possível gestão do esquecimento na história dentro da cultura política brasileira, porém devido à notável dificuldade em captar ou apreender o esquecimento, Seixas estende as mesmas proposições teóricas da memória ao esquecimento, lendo-o a contrapelo (cf. SEIXAS, 2003). 
[3] Jean Amery, um dos ex-prisioneiros dos campos de concentração nazista, afirma, por exemplo, que “quem foi torturado permanece torturado”. Primo Levi, outro sobrevivente, parece compartilhar da mesma opinião de Amery: “[...] a recordação de um trauma, sofrido ou infligido, é também traumática, porque evocá-la dói ou pelo menos perturba; quem foi ferido tende a cancelar a recordação para não renovar a dor; [...]” (cf. LEVI, 1990, p. 10).
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