quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

História e seu apelo à ficção (em Hayden White)

Trópicos do Discurso é um compilado de ensaios e artigos escritos pelo historiador estadunidense Hayden White num intervalo de dez anos, entre 1966 e 1976. Publicados inicialmente em revistas acadêmicas, como a History and Theory, e em capítulos de livros organizados, estes trabalhos são úteis para compreendermos alguns elementos da principal obra de White, Meta-História, publicada em 1971, que é objeto de polêmicas ainda hoje na área de História. O post que se segue apresenta um resumo de um texto da compilação: “O texto histórico como artefato literário”, terceiro capítulo do livro, o texto original é de 1974.

Neste ensaio um dos significados que White atribui à “meta-história” é o questionamento crítico à história a partir de sua proposta epistêmica: a de ser um relato fidedigno do passado e que explique os acontecimentos e os processos sócio-temporais para os leitores do presente. Sendo assim, as principais questões postas pela “meta-história” a História se direcionam a: a estrutura histórica; o status epistemológico de suas explicações; as formas possíveis de representação história e suas bases; o grau de autoridade dos relatos em relação a um conhecimento seguro da realidade. Porém, “meta-história” significa também a unidade ou os recursos presentes na História/Historiografia que não são necessariamente “históricos”. Isto é, ela é aquilo que não tem a ver com a realidade passada que historiador pretende “transmitir”, mas com o meio através do qual ele produz essa “transmissão”.

Em relação ao status das narrativas históricas, White afirma que estas são “ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto descobertos e cujas formas têm mais em comum com os seus equivalentes na literatura do que com seus correspondentes nas ciências” (1994, p. 98). Em diálogo com o crítico literário Northrop Frye, o historiador aproxima a história (escrita) ao mito. Necessário dizer aqui que “mito” não significa lendas ou contos da carochinha, mas narrativas simbólicas que misturam acontecimentos reais e imaginários e que são contadas com o objetivo de explicar fenômenos da natureza e fatos da realidade. Mito não é sinônimo necessário de mentira nos saberes humanos. Contudo, White não equivale história e mito, embora haja, segundo Frye, modelos de narrativa histórica que se tornam “mitos” devido à abrangência que adquirem. Ou seja, eles se tornam uma forma geral que determinados historiadores usam para encaixar os fatos. O “mito” da classe trabalhadora como revolucionária é um exemplo disso, ele segue os mitos românticos “baseados numa busca de uma Cidade de Deus ou de uma sociedade sem classes”. Contudo, ao contrário do mito, Frye explica que a história faz o movimento inverso. Em vez de encaixar os fatos dentro de um modelo pré-estabelecido, submetendo o conteúdo à forma, a história objetiva através dos próprios fatos construir uma forma. White concorda com o crítico, porém é mais cauteloso nessa explicação, pois, ainda que não defenda uma equivalência entre mito e história, também não admite uma oposição como a de Frye (entre história-real/mito-ficção). A tese de White é a de que a narrativa histórica consegue realizar explicações pertinentes através de uma “urdidura de enredo” na qual os fatos são codificados em estórias “tipos ideais” (ou arquetípicas), por sua vez, muito semelhantes às ficções e aos mitos.

Hayden White no Brasil em 2013
Há um diálogo também com o historiador R.G. Collingwood, segundo o qual defendia que o historiador era um contador de estória, pois usava a imaginação para construir uma organização inteligível entre fatos que, antes de serem processados, careciam de sentido. Mas, para White, Collingwood errava ao dizer que há histórias nos acontecimentos mesmos e que o historiador tratava-se tão somente de um “imaginador construtivo”. De acordo com o primeiro, é o historiador que atribui sentido aos acontecimentos. Numa história, ele exclui eventos, e dá destaque a outros. E vai mais além... “nenhum acontecimento histórico é intrinsecamente trágico; só pode ser concebido como tal de um ponto de vista particular ou de dentro de um contexto de um conjunto estruturado de eventos do qual ele é um elemento que goza de um lugar privilegiado. Pois na história o que é trágico de uma perspectiva é cômico de outra, exatamente da mesma forma que na sociedade o que parece ser trágico do ponto de vista de uma classe pode ser, como Marx pretendeu demonstrar com O 18 Brumário de Luís Bonaparte, apenas uma farsa do ponto de vista de outra classe”, salienta Hayden White (1994, p. 101). Talvez uma produção fílmica ilustrativa da afirmação acima seja a que Clint Eastwood dirigiu em A Conquista da Honra e Carta de Iwo Jima. Sobre a Segunda Guerra Mundial, ambos os filmes são narrativas de um mesmo acontecimento: o conflito entre EUA e Japão em disputa pela ilha de Iwo Jima. Um território inabitado e sem nenhuma riqueza para ser explorada. Sua ocupação, assim como sua contra-ocupação, é simplesmente simbólica. Conquista da Honra é a versão dos soldados americanos, enquanto Cartas de Iwo é a de um soldado japonês que foi obrigado a ir para o front de batalha. Fica a indicação!

O que White chama de “criação de ficção” é o processo literário em que o historiador harmoniza o conjunto de fatos através das estruturas de enredo com vistas a produzir um efeito particular que está intimamente ligado com o modo pelo qual o pesquisador compreendeu a situação histórica ou que pretende transmitir ao leitor. Neste sentido, o autor apresenta dois tipos de explicação para eventos estranhos ou não-familiares. O científico: em que o evento é submetido a leis gerais e passam a ser compreendidos como efeitos de uma causa particular. E o religioso, cultural ou estórico: a atribuição de sentido do evento é feita dentro de uma história que em geral possui gêneros pré-existentes como a tragédia, romance, comédia, sátira, epopéia, etc. e então, na medida em que o leitor compreende a trama, a estranheza é dissipada. No caso especialmente da História, o que há de “histórico” nessa narrativa explicativa é o evento do passado (estranho), enquanto o que promove a inteligibilidade é o componente “meta-histórico”, ou seja, a estrutura de enredo culturalmente reconhecida numa dada sociedade (familiar). White compara esse processo com a terapia psicanalítica. O paciente reconhece muito bem “o evento” que lhe deixara traumatizado, portanto, de nada adiantaria ao psicanalista descrevê-lo novamente (como um historiador “positivista), o que convém então é a proposta que o profissional faz ao paciente para que este consiga reelaborar a narrativa deste “evento”, dando novo sentido ao mesmo, compreendendo, de modo a que não mais seja um “trauma”. Sobretudo para que sua vida se desapegue da “neurose” que o prende ao passado, fazendo com ele viva o presente e tenha perspectivas de futuro. Esta passagem demonstra que a proposta historiográfica de Hayden White possui além de tudo um conteúdo ético que pouco tem sido considerado pela comunidade de historiadores. Tanto a escolha das figuras literárias e do destaque para certos eventos, como a preocupação com o presente-futuro fazem parte deste programa de ação.

Conforme as concepções de White, quanto mais há histórias sobre um determinado evento ou processo mais opaca é a sua realidade. Isto porque a história funciona como um ícone. Ela é a mediadora entre os acontecimentos “neutros” e “caóticos” e as estruturas de enredo “pré-genéticas” (os arquétipos narrativos de uma determinada sociedade/cultura). A história não reproduz simplesmente os eventos que aconteceram, mas indica a direção em que devemos compreendê-los, pensá-los, como uma “metáfora”. Tendo em vista que seu papel é familiarizar o público com eventos estranhos, a história se utiliza da linguagem figurativa e não da linguagem técnica. A linguagem técnica e uniforme é utilizada por ciências como física e química e apenas familiarizam os eventos para aqueles que são da área. Enquanto a proposta de história ao se direcionar ao público geral se utiliza, no máximo, da linguagem culta usual. Especialmente porque não possui uma terminologia técnica comumente aceita, nem sequer um acordo sobre o tipo de evento que se ocupa. Desta maneira, para tornar o "estranho" passado compreensível e familiar, a história dispõe de técnicas de linguagem figurativa.  

Em todo caso, um historiador poderá dizer que os acontecimentos foram somente induzidos a partir dos documentos e que ele nada os acrescentara. Neste caso, a hipótese de White é a de que os documentos já pretendam transmitir uma certa direção de leitura sobre os acontecimentos que eles registram e, sendo assim, o historiador acaba mordendo a isca ao naturalizá-los (devido à ausência de autoconsciência tropológica). Como já salientaram Le Goff e Foucault, todo documento é um monumento. Há motivos e intenções inscritos nos materiais que chegam até o presente, geralmente estes pretendem transmitir uma determinada imagem da sociedade passada e ocultar outras. Além do mais, os documentos são escolhidos pelo pesquisador.

White explica que os eventos em uma narrativa histórica são diversamente expostos. Considerando cada letra um evento, real ou projetado, tem-se por exemplo dois casos: A, b, c, d, e, .....n; ou a, b, c, d, E, ......n. Onde “a” (A) possui destaque ou valor maior sobre os outros eventos, então trata-se de uma história de tipo “determinista” (ex: Segundo Discurso de Rousseau, Manifesto de Marx e Totem e Tabu de Freud), pois os últimos eventos seriam um resultado ou consequência do primeiro. Por outro lado, onde “e” (E) possui status privilegiado trata-se de uma narrativa “escatológica” ou “apocalíptica” (ex: Cidade de Deus de Sto. Agostinho e Filosofia da História de Hegel). Se a série não destacasse nenhum evento (sendo: a, b, c, d, e, ....n), então esta seria a forma pura da crônica que, apesar de promover uma ordenação dos fatos, se utiliza do “tempo e do espaço apenas como princípios interpretativos inspiradores”. O mesmo tipo pode ser usado para uma narrativa irônica, a qual nega que qualquer série histórica possa conter qualquer significado mais amplo. Como se vê, trata-se tão somente de uma questão de escolha sobre como devemos compreender os eventos passados, por sua vez, dentro de uma estrutura já concebida e reconhecida na cultura em que ela é (re)produzida.

Considerações

Neste ensaio, Hayden White apresenta seu lado mais estruturalista. Ao longo do escrito aparecem diversas referências a autores desta corrente (Lévi-Strauss, Jakobson e outros). Apesar de sua “teoria dos tropos” se mostrar bastante esquemática neste texto, como o próprio White confessa, a inspiração intelectual do estruturalismo o acompanha desde Meta-História, onde sua abordagem será melhor desenvolvida. Embora não seja novo, o ponto mais importante neste texto é a defesa de que “a distinção mais antiga entre ficção e história, na qual a ficção é concebida como a representação do imaginável e a história como a representação do verdadeiro, deve dar lugar ao reconhecimento de que só podemos conhecer o real comparando-o ou equiparando-o ao imaginável. [...] Isso implica que toda narrativa não é simplesmente um registro ‘do que aconteceu’ na transição de um estado de coisas para outro, mas uma redescrição progressiva de conjunto de eventos de maneira a desmantelar uma estrutura codificada num modo verbal no começo, a fim de justificar uma recodificação dele num outro modo no final. Nisto consiste o ‘ponto médio’ de todas as narrativas” (1994, p. 115).

Como exemplo o autor aponta “historiadores” da Revolução Francesa: Edmund Burke decodificou os eventos da revolução como grotescos, para recodificá-los no modo da ironia; Michelet os recodifica no modo da sinédoque; e Tocqueville os recondica no modo da metonímia. A sinédoque e a sinonímia são figuras de linguagem muito caras a historiografia, isto porque são especificamente propícias para o tipo de exercício lógico que relaciona as partes ao todo (característica compartilhada com a hermenêutica e que tem muito a ver com a Poética e a Retórica aristotélicas; saberes que a historiografia fez dívida e até saiu sem pagar a conta em muitas ocasiões). Relembrando o filme mencionado no texto anterior, a conclusão após a leitura de White é a de que a realidade (do passado) é “mais estranha do que a ficção”. Aliás, aplicando a fórmula de White a respeito das estruturas narrativas, é a ficção que torna a realidade não-estranha, familiar, confortável, cômica ou trágica.

Leia também: "Todo mundo odeia o White: ficção na narrativa histórica". 

Referências:

A CONQUISTA da Honra. Direção de Clint Eastwood. Estados Unidos: Warner Bros. Pictures, 2006. (132 min.), DVD, son., color. Legendado.
CARTAS de Iwo Jima. Direção de Clint Eastwood. Estados Unidos: Warner Bros. Pictures, 2006. (140 min.), DVD, son., color. Legendado.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. In:_____. História e Memória. Campinas: Unicamp, 1996.
WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. In:_____. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994, p. 97-116.
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