sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Foucault e sua arqueologia: um fichamento do capítulo “ciência e saber”

Chamada de fase arqueológica, os primeiros trabalhos de Michel Foucault (1926-1984) se pautaram por uma pesquisa histórica que percorresse de alguma maneira o nascimento de determinadas “ciências” modernas. Em História da loucura, de 1961, o ponto de partida era o surgimento de uma disciplina psiquiátrica no século 19; em O nascimento da clínica, de 1963, a questão central era sobre a “cientifização” da medicina; e em As palavras e as coisas, de 1966, foram investigadas as condições de possibilidade para o aparecimento, especialmente, da filologia, da economia e da biologia. A arqueologia do saber, livro de 1969, em que explica a metodologia empregada em suas pesquisas, Foucault responde no último capítulo um questionamento que poderiam lhe fazer. Por um lado, as “histórias” que a arqueologia (foucaultiana) descreve não seriam as de disciplinas duvidosas que, talvez, não atingiram o nível de ciências como a matemática, a física e a química? E, por outro, a epistemologia não seria o estudo que descreve as ciências que se formaram a partir ou a despeito das disciplinas descritas pela arqueologia? Por isso, apresenta-se a relação entre a arqueologia e a análise das ciências.  

Desde o início, Foucault deixa claro que a arqueologia não se preocupa com as fronteiras colocadas por uma disciplina. Diferentemente de um tipo de relato histórico que contorna os desvios, as lacunas, as contradições, os acidentes e os erros para traçar uma síntese ou um caminho linear até chegar à disciplina em seu estágio atual, a arqueologia descreve positividades. Há, portanto, uma separação conceitual que diferencia “positividades” de “disciplinas”. A positividade de um discurso é, para Foucault, a definição de um espaço limitado de comunicação. Ela não tem a amplidão de uma disciplina tomada em toda a sua transformação histórica. Porém, através da positividade podemos saber se dois pensadores estão falando da “mesma coisa”, desenvolvendo o mesmo “campo conceitual”. A positividade desempenha o papel do que se chama por “a priori histórico”. Isto é, ela se refere às condições de realidade para enunciados. E os princípios segundo os quais os enunciados substituem, se transformam e desaparecem. As disciplinas podem servir como “iscas”. Mas nunca como limites. 

Um exemplo do uso da “isca”. O arqueólogo, tomando como base uma disciplina do presente, questiona-se como foi possível pensar da maneira como tal disciplina pensa ou como esta apareceu. Por isso se lança nas camadas do que foi dito e escrito no passado sobre algum objeto do saber. Vemos o método aplicado em História da Loucura, ali Foucault não separa obras literárias, filosóficas, opiniões comuns, documentos assinados por padres e figuras jurídicas ou discursos médicos. Descreve os acontecimentos do discurso, para perceber através deles mudanças nas maneiras de pensar e nas sensibilidades que, ademais, alteram as maneiras de conhecer e, logo, de emitir juízos sobre a loucura. Toda essa rede possibilita a instituição de novas práticas discursivas e não-discursivas.

O que tornou possível o nascimento da disciplina psiquiátrica no século 19 foi “todo um jogo de relações entre a hospitalização, a internação, as condições e os procedimentos da exclusão social, as regras da jurisprudência, as normas do trabalho industrial e da moral burguesa, em resumo, todo um conjunto que caracteriza, para essa prática discursiva, a formação de seus enunciados; mas essa prática não se manifesta somente em uma disciplina de status e pretensão científicos” (FOUCAULT, 2010, p. 200). Assim, a formação discursiva que tornou possível o aparecimento da psiquiatria não é coextensiva à própria disciplina, mas a ultrapassa e a cerca de todos os lados. Entre os séculos 17 e 18, não se percebe nenhuma disciplina que pudesse ser apontada como precursora da psiquiatria. Mas há sim toda uma prática discursiva com regularidades (ex: análise das febres, alteração dos humores ou enfermidades do cérebro) que se encontra não só no discurso médico, mas em regulamentos administrativos, em textos literários e filosóficos e etc. Há na época clássica (sec. 17-18), uma formação discursiva e uma positividade acessível à descrição, mas nenhuma disciplina comparável a psiquiatria.   

Mas então pode se perguntar se as positividades e as formações discursivas não são aí germes que prenunciam a chegada de uma disciplina. Foucault nega novamente. A descrição arqueológica não dá conta da totalidade dos enunciados que, ainda dentro de uma formação discursiva, se afastariam de qualquer semelhança dos enunciados de uma disciplina já constituída numa época posterior. Por isso: “As formações discursivas não são, pois, as ciências futuras no momento em que, ainda inconscientes de si mesmas, se constituem em surdina: não estão, na verdade, em um estado de subordinação teleológica em relação à ortogênese das ciências” (p. 202). Foucault quer escapar da narrativa do destino inevitável. Isto porque as possibilidades dentro de uma formação discursiva são tamanhas que poderiam levar a constituir “disciplinas” inteiramente distintas das que temos hoje. Logo, a formação discursiva não pode ser identificada como ciência, nem com disciplinas pouco científicas, nem às figuras que prenunciam as ciências. Então qual é a relação entre as positividades e as ciências?  

O saber 

A análise das positividades mostra as regras das quais uma prática discursiva forma conjuntos de enunciados, grupos de objetos, jogos de conceitos e séries de escolhas teóricas; tais regras são as bases para construir proposições. “Trata-se dos elementos que devem ter sido formados por uma prática discursiva, para que, eventualmente, se constituísse um discurso científico, especializado não só por sua forma e seu rigor, mas também pelos objetos de que se ocupa, os tipos de enunciação que põe em jogo, os conceitos que manipula e as estratégias que utiliza” (p. 204). A esse conjunto de elementos pode-se chamar saber. “Um saber é aquilo de que podemos falar em uma prática discursiva que se encontra assim especificada: o domínio constituído pelos diferentes objetos que irão adquirir ou não um status científico; um saber é, também, o espaço em que o sujeito pode tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso; um saber é também o campo de coordenação e de subordinação dos enunciados em que os conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transformam; finalmente, um saber se define por possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso. Há saberes independentes das ciências; mas não há saber sem uma prática discursiva definida [...]” (p. 204-5). 

A arqueologia encontra o ponto de equilíbrio de sua análise no saber – em um domínio em que o sujeito é necessariamente situado e dependente, sem que jamais possa ser considerado titular (p. 205). Distinguindo os domínios científicos dos territórios arqueológicos, vemos que os últimos podem atravessar textos “literários” ou “filosóficos”, bem como científicos. O saber não está contido somente em demonstrações, mas pode estar em ficções, reflexões, narrativas, regulamentos institucionais, decisões políticas. Por exemplo, “o território arqueológico da gramática geral compreende tanto os devaneios de Fabre d’Olivet (que jamais receberam status científico e se inscreveram antes no pensamento místico) quanto à análise das proposições atribuitivas (que era então aceita à luz da evidência e na qual a gramática gerativa pode reconhecer, hoje, sua verdade prefigurada)” (p. 206).

Quando uma ciência se constitui ela não retorna à prática discursiva em que aparecia, nem dissipa o saber que a cerca. “Aquilo que na época clássica era considerado como conhecimento médico das doenças da mente, ocupava no saber da loucura, um lugar muito limitado: não era mais que uma de suas superfícies de afloramento entre muitas outras (jurisprudência, casuística, regulamentação policial etc.); em compensação, as análises psicopatológicas do século 19, que também passavam por conhecimento científico das doenças mentais, desempenharam um papel muito diferente e bem mais importante no saber da loucura (papel de modelo e de instância de decisão). [...] A análise arqueológica em vez de definir uma relação de exclusão ou de subtração entre saber e ciência, mostra como a ciência se inscreve e funciona no elemento do saber” (p. 206-7). A influência da ideologia sobre o discurso científico, por exemplo, se articula onde a ciência se destaca sobre o saber; a ideologia não se identifica com o saber, não o exclui, mas se localiza nele, estrutura alguns de seus objetos, enunciações, conceitos e estratégias. A economia política é exemplar em seu papel na sociedade capitalista, servindo aos interesses da classe burguesa, por quem e para quem ela foi formulada. Mas qualquer descrição precisa das relações entre estrutura epistemológica da economia e sua função ideológica deverá passar pela análise da formação discursiva que lhe deu lugar e do conjunto de ferramentas conceituais e teóricas que foram elaboradas e sistematizadas.

Emergências distintivas das formações discursivas

Na descrição arqueológica há uma cronologia específica para situar metodologicamente os acontecimentos do discurso. 1º) O limiar de positividade descreve três instantes: quando uma prática discursiva se individualiza, torna-se autônoma; quando se encontra um único e mesmo sistema de formação de enunciados; e quando esse sistema se transforma. 2º) Limiar de epistemologização: momento em que um conjunto de enunciados, de uma formação discursiva, se delineia e pretende fazer valer normas de verificação e coerência e o fato de que ele exerce sobre o saber uma função dominante de modelo, crítica ou verificação. 3º) Limiar de cientificidade: momento em que uma figura epistemológica obedece a um certo número de critérios formais, quando seus enunciados respondem a certas leis de construção das proposições. 4º) Limiar de formalização: momento em que um discurso científico pode definir os axiomas que lhe são necessários, os elementos que usa, as estruturas proposicionais que lhe são legítimas e as transformações que aceita, desenvolvendo um edifício formal a partir de si mesmo (p. 209).

A dinâmica destes movimentos é para a arqueologia um de seus domínios de maior exploração. No entanto, trata-se de acontecimentos cuja dispersão não é evolutiva; a ordem singular é própria a cada formação discursiva. Um exemplo: No caso da economia, no século 17, reconhece-se um limiar de positividade. Ele coincide com a prática e a teoria do mercantilismo, mas sua epistemologização só se produziria um pouco mais tarde, no fim deste século ou no início do sec. 18, com Locke e Cantillon. No entanto, o séc. 19 assinala, ao mesmo tempo, com Ricardo, um novo tipo de positividade, uma nova forma de epistemologização, que Cournot e Jevons por sua vez modificariam, justamente na época em que Marx, a partir da economia política, faria aparecer uma prática discursiva inteiramente nova (p. 210).

A única ciência que é uma exceção em relação à historicidade de seus momentos de constituição é a matemática. Ela rompeu todos os limiares de uma só vez. Seu remodelamento é nada mais do que uma purificação que volta sempre ao começo. Daí a tentativa de todas as ciências em adotarem seu modelo, caminho que, além de ser um fracasso a todas as demais, também é um mal exemplo a ser seguido pelos historiadores das ciências (p. 211).

Os diferentes tipos de história das ciências

[1º tipo] No nível do limiar formalização é essa a história que a matemática conta de si mesma. O que ela foi em um dado momento jamais é lançado no campo da não-cientificidade, mas se encontra redefinido no edifício formal que a constitui. Para essa história da matemática, a álgebra de Diofano não é uma experiência que permanece em suspenso, é um caso particular da álgebra tal como conhecemos desde Abel e Galois.  [2º tipo] “É diferente a análise histórica que se situa no limiar da cientificidade e que se interroga sobre a maneira pela qual ele pôde ser transposto a partir de figuras epistemológicas diversas. Trata-se de saber como um conceito carregado de metáforas e conteúdos imaginários se purificou podendo assumir status e função de conceito científico. Ou de saber como uma ciência se estabeleceu acima e contra um nível pré-científico que a preparava e resistia a seu avanço, transpondo seus obstáculos e limitações”. Pesquisadores como Bachelard e Canguilhem apresentaram o modelo desta história de segundo tipo (p. 212-3).  Ela era diferente da história que faz uma análise recorrencial [1º tipo], que se situa no interior da própria ciência e de contar sua formalização no vocabulário formal que é hoje o seu. Essa história toma por norma a ciência já constituída, a história que ela conta é escandida pela oposição verdade e erro, racional e irracional, obstáculo e fecundidade, pureza e impureza, científico e não-científico. Trata-se de uma história epistemológica das ciências (p. 213).

[3º tipo] O terceiro tipo de análise histórica é o que toma como ponto de ataque o limiar de epistemologização. É esse o modelo que a arqueologia seguiu nos três primeiros trabalhos de Foucault. “Nesse nível, a cientificidade não serve como norma: o que se tenta revelar, na história arqueológica, são as práticas discursivas na medida em que dão lugar a um saber, e em que esse saber assume o status e o papel de ciência. Empreender nesse nível uma história das ciências não é descrever formações discursivas sem considerar estruturas epistemológicas; é mostrar como a instauração de uma ciência, e eventualmente sua passagem à formalização, pode ter encontrado sua possibilidade e incidência em uma formação discursiva e nas modificações de sua positividade” (p. 213). O intuito é “fazer aparecer todo o jogo das diferenças, das relações, dos desvios, das defasagens, das independências, das autonomias, e a maneira pela qual se articulam entre si suas historicidades (p. 214)”. Para se distinguir das outras histórias das ciências, chamou-se de análise da episteme. Por “episteme entende-se o conjunto das relações que podem unir em uma dada época as práticas discursivas que dão lugar a figuras epistemológicas, a ciências, eventualmente a sistemas formalizados”. Ela “não é uma forma de conhecimento ou um tipo de racionalidade que, atravessando as ciências mais diversas, manifestaria a unidade soberana de um sujeito, de um espírito ou de uma época; é o conjunto das relações que podem ser descobertas, para uma época dada, entre as ciências, quando estas são analisadas no nível das regularidades discursivas” (p. 214).

Outras arqueologias

É possível que uma arqueologia descreva as regularidades discursivas de um saber sem caminhar em direção às figuras epistemológicas e às ciências? Isto é, “a orientação voltada para a episteme é a única que pode abrir-se a arqueologia?” A arqueologia deve ser exclusivamente uma maneira de interrogar a história das ciências? (p. 215). A resposta é não! Neste sentido, Foucault diz esperar o aparecimento de arqueologias que se direcionem a caminhos distintos.  Ainda na trilha de seus trabalhos relacionados às ciências, o autor prenuncia suas futuras pesquisas que culminarão em História da Sexualidade (de 1976). Ele diz já identificar como a sexualidade caminhou em direção à episteme:

“[...] mostraríamos de que maneira, no século 19, se formaram figuras epistemológicas como a biologia ou a psicologia da sexualidade; e por qual ruptura se instaurou, com Freud, um discurso de tipo científico. Mas percebo também uma outra possibilidade de análise: ao invés de estudar o comportamento sexual dos homens em uma dada época, ao invés de descrever o que os homens pudessem pensar da sexualidade, perguntaríamos se nessas condutas assim como nessas representações, toda uma prática discursiva não se encontra inserida; se a sexualidade, fora de qualquer orientação para um discurso científico, não é um conjunto de objetos de que se pode falar, um campo de enunciações possíveis, um conjunto de conceitos, um jogo de escolhas (que podem aparecer na coerência das condutas ou em sistemas de prescrição). Tal arqueologia, se fosse bem sucedida, mostraria como as proibições, as exclusões, os limites, as valorizações, as liberdades, as transgressões da sexualidade, todas as suas manifestações, verbais ou não, estão ligadas a uma prática discursiva determinada. Ela faria aparecer não certamente como verdade última da sexualidade, mas como uma das dimensões segundo as quais pode ser descrita, uma certa ‘maneira de falar’; e essa maneira de falar mostraria como ela está inserida, não em discursos científicos, mas em um sistema de proibições e de valores. Tal análise seria feita assim não em direção de episteme, mas no sentido do que se poderia chamar ética” (p. 216-217). Além desse, Foucault dá outros dois exemplos, um em relação à pintura artística e outro em relação à política.

Neste sentido, a arqueologia não está restrita a análise dos discursos científicos. Pois não quer descrever a ciência em sua estrutura própria, mas o domínio do saber. Assim, ela pode se movimentar tanto em direção às figuras epistemológicas do saber e às ciências, como em outra direção. O motivo porque a pesquisa arqueológica tenha até agora caminhado em direção à análise das ciências se dá porque em nossa cultura as formações discursivas possuem uma tendência à epistemologização.

Referências:

FOUCAULT, Michel. Ciência e saber. In:______. A arqueologia do saber. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 199-219.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1978.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977.
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