terça-feira, 29 de outubro de 2013

Elos entre história dos conceitos e história social em Koselleck

Buscando substituir a tradicional história das ideias, acusada de insuficiência teórica pelos Analles, a história dos conceitos é uma área de pesquisa que ganhou notoriedade no terceiro quarto do século passado. No Brasil, o historiador alemão Reinhart Koselleck é conhecido como o principal pesquisador desta modalidade. O texto que passo a resumir e comentar nas linhas abaixo trata-se de um dos ensaios reunidos em seu livro Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. No ensaio em questão, Koselleck apresenta as características gerais da história dos conceitos e em que medida ela é indispensável à história social.  

Inicialmente, Koselleck aponta algumas diferenças entre a história dos conceitos e a história social. Enquanto a primeira se detém fundamentalmente sobre textos e vocábulos, a última serve-se deles apenas para deduzir fatos, processos e dinâmicas históricas que não se encontram ali. Isto é, a história social toma a escrita como referências que apontam para acontecimentos fora do texto e não como acontecimentos (da linguagem) que possuiriam funcionamentos particulares. Os métodos da história dos conceitos vêm da história da terminologia filosófica, da gramática e filologia histórica, da semasiologia¹ e da onomasiologia.² Seus resultados são comprovados pela retomada da exegese textual. N’outro pólo, a história social tem como objeto de investigação a formação das sociedades, estruturas constitucionais; relações entre grupos, camadas e classes; as circunstâncias nas quais ocorreram certos eventos, com foco em estruturas e alterações de médio e longo prazo. Além disso, pode pesquisar teoremas econômicos, por meio dos quais torna-se possível problematizar os eventos singulares e os desenvolvimentos políticos dos fatos. Apesar destas diferenças, a história dos conceitos e a social se alimentam de um mesmo corpus. Isto porque, segundo Koselleck, “sem conceitos comuns não pode haver sociedade e, sobretudo, não pode haver unidade de ação política. Por outro lado, os conceitos fundamentam-se em sistemas político-sociais que são, de longe, mais complexos do que faz supor sua compreensão como comunidades linguísticas organizadas sob determinados conceitos-chave” (2006, p. 98). Por isso, faz-se necessário esclarecer a relação entre tais modalidades de pesquisa histórica em três níveis.

1º] Até que ponto a história dos conceitos segue os métodos históricos-críticos clássicos e contribui para compreender os temas da história social? O historiador lança mão de alguns exemplos neste tópico para demonstrar que a história social não pode prescindir do auxílio da história dos conceitos. Um destes exemplos é o discurso reformista de Karl Hardenberg, em 1808. Após a Revolução Francesa, este estadista formulou um programa que pretendia uma reestruturação tanto econômica como social da Prússia. Para compreender tal documento é necessário que se faça uma exegese crítica dos conceitos presentes no programa. No escrito consta a substituição do conceito de “estamento” pelo de “classe”, propondo com isso uma numa organização social. “No lugar de uma sociedade estamental tradicional, deve entrar uma sociedade de cidadãos do Estado (formalmente igualitária) cuja filiação a classes (a definir econômica e socialmente) possibilite uma nova hierarquia de Estado”, escreve Koselleck (2006, p. 99). Pode-se dizer que o “estamento” é o significante de um tipo de mobilidade social muito insipiente se comparado ao de “classe”. Está mais ligado a um privilégio (um título de honra ou nobreza, por exemplo) do que a uma conquista econômica ou social. Demonstrava-se, com isso, uma crítica ao tradicional direito de soberania para reivindicar uma maior mobilidade social: constitui parte de algumas consequências da Revolução Francesa que afetaram todo o Ocidente. O emprego do conceito de “cidadão” na oração de Hardenberg também nos diz sobre elementos sócio-históricos presentes na ocasião. Tratava-se de um conceito criado recentemente e visava polemizar a desigualdade de ordens num contexto que ainda não existia o direito civil.

Ambos os conceitos (“classe” e “cidadão”) são, para Koselleck, indicadores de mudanças sociais e políticas.  Ainda que não existissem empiricamente, eles sinalizavam não só o “espaço de experiências” (passado-presente), mas também o “horizonte de expectativas” (futuro) de uma determinada sociedade no tempo. Isto porque em todas as épocas de crise, os conceitos apontam mais para o futuro do que para designar fatos. Grande parte das conquistas e privilégios políticos foi formulada, primeiro, na linguagem para que pudesse ser descrita e, depois, fosse efetivada. “Com esse procedimento, diminuiu o conteúdo empírico presente no significado de muitos conceitos, enquanto aumentava proporcionalmente a exigência futura neles contida. [No período em questão,] a co-incidência entre o conteúdo empírico e o campo de expectativa diminuía cada vez mais. Inclui-se aqui a criação de numerosos ‘-ismos’ que serviram como conceito de agrupamento e de dinâmica para ordenar e mobilizar as massas estruturalmente desarticuladas” (KOSELLECK, 2006, p. 102-103).

2º] Em segundo nível, Koselleck reflete sobre a história dos conceitos como uma disciplina autônoma, pois ela, além de ser metodologia de crítica da fonte, é um campo particular de estudos. Por exemplo, à história social, ela serviu para criticar as traduções descontextualizadas de determinadas expressões; promoveu uma crítica à história das ideias, tendo em vista que, esta modalidade trabalhava com grandes constantes que se articulavam sem alteração, ainda que sob distintas formas históricas (por exemplo: o liberalismo na Europa e no Brasil); na investigação da história de um conceito, foi possível pesquisar o “espaço de experiência” e o “horizonte de expectativa” de um período, ao mesmo tempo em que pesquisava a função política e social do mesmo conceito – tratando assim do espaço e do tempo, numa perspectiva sincrônica de análise. Além disso, o procedimento da história dos conceitos desenvolve a tradução de textos do passado para nossa compreensão atual, realizando um estudo diacrônico.

Denomina-se história dos conceitos o estudo que contém um conjunto desses procedimentos citados acima; disciplina próxima a filologia histórica e, neste caso, independente da história social. Como objeto de pesquisa, pode-se investigar a duração do significado de um conceito. Por exemplo, por volta de 1700, “burguês” significava um cidadão ou habitante da cidade (numa sociedade estamental na qual definições legais, políticas, econômicas e sociais estavam unidas); em 1800, significava um cidadão do Estado (definido, negativamente, como aquele que não pertencia nem ao campesinato, nem à nobreza); e, por último, por volta de 1900, significava aquele que não é proletário (membro de uma classe do ponto de vista puramente econômico, numa sociedade de economia liberal), designação válida tanto para o direito de voto de classe, quanto para a teoria marxista.

O princípio diacrônico da história dos conceitos exige que, num primeiro momento, ela deixe de lado os conteúdos extralingüísticos. Pelo aspecto somente temporal há três tipos de conceitos políticos e sociais: (a) os da doutrina constitucional aristotélica (são significados que permanecem em parte os mesmos, inclusive seus conteúdos empíricos); (b) conceitos que seus conteúdos mudaram bastante, embora possuam a mesma constituição linguística (neste caso, seus conteúdos só podem ser reconstruídos historicamente – o conceito “história”, na modernidade, parece ser ao mesmo tempo seu sujeito e seu objeto, enquanto “histórias” tem como objeto pessoas e domínios concretos); (c) neologismos que surgem em momentos específicos visando registrar ou provocar situação políticas e sociais (ex: comunismo e fascismo). Na história dos conceitos, há uma tensão entre fatos e conceitos, nunca um “espírito de época”; ora se neutraliza essa tensão, ora ela se irrompe. Por isso, tal disciplina não deve se restringir a significação das palavras e suas modificações. É preciso explicar porque vários conceitos são utilizados para descrever um único fato ou dinâmica, como no caso de “secularização” e “mundialização”.

Koselleck (1923-2006)
3º] No último nível, Koselleck pondera sobre a teoria da história dos conceitos e da história social, sobretudo, em que medida a última pode operar sem atender as exigências da primeira. A história dos conceitos aborda estados sociais, do ponto de vista sincrônico, e suas alterações ao longo do eixo diacrônico. Embora ela não apreenda imediatamente a realidade social a partir do conceito, possui como premissa refletir a co-incidência entre conceito e realidade, em estruturas e transformações. “O método da história dos conceitos é uma condição [imprescindível] para questões da história social exatamente porque os termos que mantiveram seu significado estável não são, por si mesmo, um indício suficiente da manutenção do mesmo estado de coisas do ponto de vista da história dos fatos; por outro lado, fatos cuja alteração se dá lentamente, a longo prazo, podem ser compreendidos por meio de expressões bastante variadas”, escreve Koselleck (2009, p. 114).

Sob a premissa teórica de confrontar e medir permanência e alteração, tendo a última como referência a primeira, a história dos conceitos pesquisa a resistência das teorias do passado à modificação, especialmente, às disjunções entre os antigos significados lexicais referentes a um fato ou circunstâncias não mais existentes, assim como novos significados de uma mesma palavra. Permitindo também, com isso, enxergar significados que não correspondem a nenhuma realidade factual ou ver fatos que transparecem em significados inconscientes ao usuário do conceito. Nas camadas de significado encobertas pelo tempo e pelo uso cotidiano da língua, a história dos conceitos promove uma decifração. No próximo post farei um comentário sobre o ensaio de Koselleck. Clique aqui para ler!

Referências:

KOSELLECK, Reinhart. História dos conceitos e história social. In:______. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006, p. 97-118.

1 Semasiologia: estudo dos sentidos lingüísticos partindo do significante (palavra) ao significado (coisa).
2 Onomasiologia: estudo das mutações e das diferenças de sentido, partindo do significado ao significante, ou seja, o exercício oposto da semasiologia.

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