sexta-feira, 28 de junho de 2013

Naturalmente anarquista: uma iniciação à filosofia de Proudhon

Posto abaixo as principais partes de um texto meu que foi publicado nesta semana pela Revista Ágora de Cerro Grande (RS). O intuito de divulgação é pelo caráter didático do mesmo sobre a filosofia anarquista, especialmente, porque sei que uma parte significativa que acessa o blog tem simpatia e interesse pelo anarquismo, tema que há algum tempo tem ficado em falta aqui. Vou dividir o texto em duas partes, a primeira sobre Proudhon e a segunda sobre Kropotkin. Aproveito para recomendar a revista Ágora aos leitores e aos colegas de graduação e de pós-graduação que estão começando a publicar textos acadêmicos.

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No livro O que é a propriedade?, de 1840, Pierre-Joseph Proudhon assumiu-se anarquista pela primeira vez. Nesta época, a palavra anarquia era utilizada como arma de ataque nos debates políticos e seu significado estava relativo à desordem e ao caos (PRÉPOSIET, 2007, p. 89). Em defesa da anarquia, Proudhon travou uma batalha pelo significado da palavra, dizendo que esta (a anarquia) significava a ordem e não a desordem. Para o filósofo francês, a anarquia era a organização das coisas e dos seres no mundo sem necessidade de autoridade externa, pois esta sim que era a causa dos problemas e da desorganização social que vigorava então.[1]

Proudhon, no livro seminal do anarquismo, em favor de sua proposta social mutualista, contrapôs os projetos políticos tanto do liberalismo quanto do comunismo, os quais ele acreditava ser respectivamente a expressão da propriedade e da autoridade, princípios estes causadores da miséria e da opressão.

O anarquista francês recorre a uma hipotética história primitiva (assim como o “estado de natureza” na filosofia política de Hobbes ou Rousseau) para elucidar seu leitor acerca do modo como foi instituída a autoridade política de uns sobre os outros. De acordo com Proudhon (1975, p. 235), pelo hábito e por uma questão de respeito à experiência, o mais velho do grupo geralmente era reconhecido como o líder. Sua autoridade ficava maior na medida em que o grupo crescia. Entretanto, por conta da pressão imposta pela autoridade às individualidades humanas ali presentes na coletividade, num caso ou noutro aconteceram revoltas a partir das quais os mais jovens destronaram os líderes antigos. Entretanto, pouco a pouco o hábito substituía novamente a força. Com o passar do tempo, a disputa pela autoridade foi se tornando mais complexa, sobretudo a partir de sua relação direta com a religião. Para Proudhon a questão do poder na realeza tem um vínculo direto com o direito divino. Pois, assim que se começou a atribuir a responsabilidade de liderança ao mérito e à força, foi entendido que essas tais qualidades eram dádivas de Deus àqueles mais preparados para governar, a partir de então o mais velho do grupo teve de lhe ceder o lugar na chefia e deu início ao despotismo (1975, p. 236).

Proudhon adverte que a religião, conjuntamente com a invenção do pecado original, serviu para que o homem desconfiasse de sua natureza. Deste modo, por temer seu gênio inato para o mal, o homem crê na necessidade da autoridade de uns sobre os outros para manter a estabilidade pacífica da sociedade. Existe neste aspecto do pensamento proudhoniano um diálogo e, acima de tudo, uma crítica voraz à filosofia política de Tomas Hobbes que, de acordo também com outros anarquistas, foi desenvolvida para justificar a criação do Estado moderno.

Tanto a crença da necessidade do Estado quanto da autoridade baseada em Deus ou no direito divino são constituições de um mesmo preconceito, indica Proudhon. No entanto, o autor coloca que este preconceito será facilmente abolido por meio do uso da razão na observação à natureza. Pois, a razão desenvolvida através do processo evolutivo da ciência é o instrumento necessário para que os homens enxerguem que a melhor escolha para a organização social é a anarquia.

É necessário considerar que a noção de história para Proudhon está ligada a um lento progresso de evolução, às vezes acompanhada de processos abruptos chamados de revolução. Contudo, diferentemente de outros pensadores anarquistas, Proudhon, ao menos neste livro, não defende a revolução pela força e imposição, pois considera que para a sociedade se desenvolver é preciso que todos desejem espontaneamente de livre acordo. Destarte, pode-se dizer então que a razão e a ciência encontram-se no ápice desta evolução histórica, “e esta ciência envolve conjuntamente o homem e a natureza” (1975, p. 12).

A relação entre natureza e história pode ser vista a partir da própria concepção do conceito de anarquia, da maneira como Proudhon a concebeu. Pois, a autoridade, como produto da propriedade e da realeza, está em decadência desde os primórdios da história do mundo e encontrará seu fim a partir do momento que em que todos descobrirem e se convencerem de que a autoridade do homem sobre o homem é inversa ao desenvolvimento intelectual ao qual a sociedade chegou. O autor conclui que a duração provável dessa autoridade pode ser calculada pelo desejo mais ou menos geral de um governo verdadeiro, quer dizer, de um governo segundo a ciência. Da mesma maneira que a natureza do homem procura a justiça na igualdade, a natureza da sociedade procura a ordem na anarquia, considera Proudhon (1975, p. 238).

Os postulados do autor nos possibilitam aferir que ao longo da história a autoridade se constituiu como um empecilho para a harmonia na organização social entre os homens e que, então agora, com o uso da razão para observar cientificamente como se deu este processo histórico, o homem concluirá que a anarquia é a condição propícia para seu desenvolvimento natural, a qual durante muito tempo lutou-se inconscientemente em seu favor.[2]

É possível nessa altura do texto estabelecer um contraponto com uma reflexão teórica de outra perspectiva. Rousseau ficou conhecido como o filósofo político defensor da natureza “boa” do homem, quando este se encontrava num a priori social hipotético (o bom-selvagem). Porém, a sociedade corromperia sua bondade, sendo necessário, portanto, recursos externos educativos que o encaminhasse para o caminho do bem (FLORESTA, 1999, p. 143-4). Além disso, Rousseau vê com bons olhos a “alienação” da vontade individual pela “vontade geral” que seria resultado correlato do bem comum. Entretanto, Proudhon discorda de Rousseau neste último ponto, e vai além pela defesa da natureza humana como base de um corpo social harmônico. Ele diz o seguinte:

“Nem a hereditariedade, nem a eleição, nem o sufrágio universal, nem a excelência do soberano, nem a consagração da religião e do tempo fazem a realeza legítima. Sob qualquer forma que se apresente monárquica, oligárquica, democrática, a realeza ou o governo do homem pelo homem, é ilegal e absurdo” (PROUDHON, 1975, p. 237).
  
Neste ponto, Proudhon advoga em favor da liberdade negativa, no sentido de ausência de intervenção sobre o indivíduo e de intermediários nas relações políticas, pois as vontades nunca podem ser representadas, elas devem ser exprimidas pelos próprios cidadãos (PROUDHON, 2008, p. 88-94). A filosofia proudhoniana é uma defesa radical da natureza humana, pois acredita que a autoridade e a coerção são elementos que a arruínam, e sem as quais, o desenvolvimento dos seres humanos se daria de maneira espontânea e plena.[3] No anarquismo de Proudhon, o qual ele chama de mutualismo neste livro, haverá igualdade de condições sociais e os homens poderão exercer livremente suas faculdades naturais. O auxílio ao próximo não será mais uma obrigação como no autoritarismo comunista, fechado sob o mito da “vontade geral”, mas o homem o fará por puro sentimento social de fraternidade e de simpatia. A propriedade do capitalismo será substituída pela posse, ou seja, pelo uso daquele que trabalha, e as trocas serão feitas por comunicação e reciprocidade, não mais por lucro e vantagem sobre o outro. Os membros da sociedade se ajudarão mutuamente por simples gosto e amor espontâneo de uns pelos outros. Podemos dizer que este é o fim da História a partir da natureza social do homem quando não mediada por autoridade, segundo Proudhon.

Sem dúvida tal exposto nos apresenta como um otimismo romântico do autor. Mas não será isso que a sociedade mais carece atualmente, isto é, acreditar em si mesma e em sua capacidade de reverter à situação política que parece tão adversa e apocalíptica? Acredito, inclusive, que o incomodo causado pelas proposições de Proudhon é provocado justamente pelo choque com nossa desesperança contemporânea. Então, que o antagonismo das duas nos proponha um momento de transformação subsidiada pela reflexão.

Texto publicado originalmente em:
ALVES, M. P. Natureza e anarquia: aspectos entre natureza e história na filosofia política anarquista de Proudhon e Kropotkin. Ágora Revista Eletrônica. Ano VIII, n. 16, p. 31-42.

Referências:
ALVES, M. P. O elogio da anarquia em “O que é a propriedade?” de Proudhon: apontamentos para a discussão conceitual do anarquismo. Revista Urutágua, Maringá, UEM, n. 27, p. 15-25, nov. 2012/abr. 2013.
FLORESTA, L. Gênese do pensamento pedagógico anarquista. Revista Educação e Filosofia. Uberlândia, vol. 13, n° 26, jul./dez., 1999, p. 141-172.
PRÉPOSIET, J. História do anarquismo. Coimbra: Edições 70, 2007.
PROUDHON, P-J. Do princípio de autoridade. In:______. A propriedade é um roubo: e outros escritos anarquistas. Seleção e notas de Daniel Guérin. Porto Alegre: L&PM, 2008, p. 74-99.
PROUDHON, P-J. O que é a propriedade? Lisboa: Editorial Estampa, 1975.


[1] Para detalhes sobre a “ressignificação” de anarquia empreendida por Proudhon, tenho um trabalho publicado recentemente pela Revista Urutágua que considero bastante didático: ALVES, 2013.
[2] “Anarquia, ausência de mestre e soberano, tal é a forma de governo de que todos os dias nós nos aproximamos e que o hábito inveterado de tomar o homem por regra e sua vontade por lei nos faz olhar como o cúmulo da desordem e a expressão do caos” (PROUDHON, 1975, p. 239). Como podemos notar nesta citação, Proudhon compreende a ordem instituída pela autoridade como a constituição da desordem, sendo o inverso da ordem natural pela anarquia.
[3] Na visão naturalista de Proudhon “homem e natureza estão intrinsecamente ligados, não havendo oposição entre eles. Pelo contrário, o homem é visto como parte integrante da natureza e só se realiza em fusão com ela [...]. O homem possui todas as qualidades que o tornam um ser capaz de viver em harmonia e liberdade, sem necessidade de contrato para regulamentar e constranger suas relações” (FLORESTA, 1999, p. 142). 

4 comentários:

  1. Já eu acho que o Proudhon é um pensador bem diferente do Kropotkin.
    O proudhon não pensa a partir de modelos.
    E ele também não é romântico ou otimista.
    E pra ele existe uma diferença entre razão centralizada e a razão solta que pode ser usada de forma diferente por indivíduos diferentes.
    Eu acho que não dá pra falar de Proudhon sem passar pelo seu conceito de direito da força.

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    1. Também concordo que seu pensamento é diferente ao de Kropotkin, mas não diria que, por isso, Proudhon (também) não é romântico ou otimista, pois me parece que ele é um herdeiro inegável do esclarecimento e, também, da crença na razão (por mais que esta seja mais sofisticada do que em outros autores anteriores e ao próprio Kropotkin). Agora não saberia dizer se são os anarquistas atuais que gostam de ler Proudhon como um autor mais contemporâneo do que ele realmente é (similar a Nietzsche e seu desencaixe ao século 19), ou se isso é impressão minha. Grato pelo comentário. Abraço!

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  2. Em tempos como esse que a gente tá vivendo hoje aqui no Brasil, quais você acredita ser ações essenciais pra quem compartilha do pensamento anarquista? Você acha que as ações de nível micro, mesmo não modificando a estrutura da sociedade são úteis de fato pro processo de mudança social? Fico frustrada por ser um processo lento demais e por não ver mudanças efetivas, sabe? parece que não tá atingindo quem precisa... Sinto falta da união de forças pra lutar mesmo, fazer alguma coisa de fato, algo mais ousado, não sei, tá acontecendo tanta coisa péssima e parece que tá todo mundo meio passado e passivo demais.

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