terça-feira, 31 de julho de 2012

O “Holocausto” no testemunho, na ética, no Direito e na vergonha: O que resta de Auschwitz

No prefácio do livro O que resta de Auschwitz de Giorgio Agamben, Jeane Marie Gagnebin ressalta que o acontecimento dos campos de concentração marca, de maneira extrema, a separação entre a política idealizada da “polis de Aristóteles” e a biopolítica contemporânea, na qual o estado de exceção se torna regra. A lei (nomos) não é mais feita para integrar, conviver, discutir e decidir, mas para excluir e, ainda, controlar a vida e produzir a morte. Em O que resta de Auschwitz, Agamben atravessa uma infinidade de questões tentando compreender ou, paradoxalmente, escancarar a dificuldade de compreensão do nazismo. O autor busca, através dos relatos da literatura produzida pelos sobreviventes dos campos de concentração, traçar proposições sobre a linguagem, a política e a ética, mais do que recortar as circunstâncias históricas relativamente clarificadas pelos historiadores. Portanto, podemos dizer que seu livro é um trabalho filosófico-histórico, porque, para além da constatação dos fatos, procura compreender o que ainda não foi compreendido (ou não queremos enxergar). Respeitando a densidade da obra, tentarei resenhar somente o primeiro capítulo d’O que resta de Auschwitz, visando, também, estimular o interesse pela leitura integral do livro.

Nos livros escritos pelos sobreviventes encontram-se algumas justificativas sobre o desejo destes em continuarem vivos após a experiência que passaram nos campos nazistas (Lager). Dentre elas estão: o anseio de se tornarem uma testemunha, isto é, a série de pretextos que só mostram o intuito em permanecer vivo a qualquer preço e o desejo de vingança, de contar ao mundo tudo o que viu e experimentou nos campos. Contudo, na dificuldade e na vergonha de justificar sua sobrevivência alguns simplesmente se calaram após a libertação, já outros não conseguiram parar de falar sobre o assunto. Primo Levi (um italiano-judeu deportado para Auschwitz) é um desses últimos. Ele conta em seus livros que toda situação era propícia para narrar o que lhe acontecera. Depois começou a escrever sobre o assunto durante a noite. Primo Levi não queria deixar morrer a testemunha que existia dentro de si. Podia sentir-se envergonhado por ter sobrevivido, mas não por ter testemunhado.

No entanto, aparece um primeiro problema no caso do testemunho. A experiência em Auschwitz (e em outros campos) foi única, inédita, em tese, “inacreditável”. Os próprios soldados nazistas inclusive diziam que ninguém acreditaria nas poucas provas que, por ventura, restassem do evento, por conta do nível de absurdo ali vivenciado. Mais do que isso, as verdadeiras testemunhas são os que tocaram o fundo, que experimentaram do início ao fim todo o processo de concentração e extermínio. Quer dizer, estão mortas e por isso não podem testemunhar. Primo Levi coloca que as verdadeiras testemunhas seriam os muçulmanos. Esse nome era usado pelos judeus para designarem seus companheiros de concentração que chegaram num estágio cultural altamente degradante em Auschwitz. Tanto que perderam os “valores humanos” e a posse da linguagem, ou seja, voltaram a uma espécie de vida nua (zoé), vida animal. Tal condição os impede de narrar, e configura a impossibilidade do testemunho em Auschwitz, tendo em vista que eles morreram (humanamente) antes de terem uma morte corporal. Hurbinek, um menino que foi levado ao campo com pouco mais de um ano de idade (e permaneceu lá até os três anos), não aprendeu a falar. O ambiente não proporcionava tal possibilidade. O som que o garoto emitia a noite (mass-klo ou matisklo) é uma palavra que ninguém no campo sabia o que significava (mesmo tendo várias nacionalidades e idiomas ali presentes) e talvez seja a palavra inventada, quer dizer, o testemunho que ainda é uma não-língua e descreve aquela situação. Disso não podemos precisar, pois Hurbinek (nome atribuído ao garoto) morreu três dias após sua libertação pelos soviéticos. Por essas razões, o testemunho de Levi nunca se esgota, porque não encontra palavras suficientes para descrever o ocorrido, caminha muito mais na direção de um testemunho sobre a impossibilidade de testemunhar.

Agamben aponta a existência de dois termos em latim para a palavra “testemunha”. O primeiro é testis, que é um terceiro sujeito colocado para resolver uma situação (numa disputa, num processo) entre dois envolvidos. O segundo é superstes, que descreve aquele que viveu algo do princípio ao fim e pode, por isso, dar testemunho do evento ocorrido. Primo Levi é o segundo. E isso significa, por extensão, que seu testemunho não tem a ver com o estabelecimento dos fatos tendo em vista um processo jurídico, pois ele não é “neutro” para tal, não é um testis. Por isso, não é o julgamento que lhe importa, tampouco o perdão. Ele diz que não tem autoridade para tal. Só lhe interessa o que torna impossível o julgamento, a “zona cinzenta” onde as vítimas se tornam carrascos, e os carrascos vítimas. “É sobretudo a respeito disso que os sobreviventes estão de acordo: ‘vítima e carrasco são igualmente ignóbeis; a lição dos campos é a fraternidade de abjeção’” (AGAMBEN, 2008, p. 27). Chama atenção o cuidado que Levi tem de não excluir os muçulmanos dos seus relatos (diferentemente do que fizeram outros sobreviventes) e nem de julgar os que participaram da execução, de não dizer que eles não eram humanos, de não dizer que eles eram monstros e também de não aceitar que sua sobrevivência tenha sido uma escolha divina. Essa é ética de Levi, de não excluir ninguém e não misturá-la com o Direito.

Giorgio Agamben, filósofo italiano (1942)
Agamben vê que o Direito causou um problema na compreensão do nazismo porque ao emitir um julgamento quis esvaziar a questão. Ele acredita que esse fato ocorreu por uma confusão cultural entre categorias éticas e jurídicas, ou teológicas e jurídicas. É necessário, portanto, a compreensão de que a questão factual não pode ser reduzida à questão jurídica. Pois, a finalidade da norma é produzir julgamento; este, porém não tem em vista nem punir nem premiar, nem fazer justiça nem estabelecer a verdade. O julgamento é em si mesmo a finalidade, ou seja, autorreferente. O julgamento é o produto de um processo construído por provas, testemunhos e evidências (acumulados e validados) que constituem sua própria história, sua própria verdade; fora disso nada mais há. “Por isso [dentro do processo que tem natureza autorreferencial] execução e transgressão, inocência e culpabilidade, obediência e desobediência se confundem e perdem importância” (p. 28); estas estão para além da pena emitida (ou como extensão) do/pelo julgamento.

Eichmann (1906-1962)

O filósofo reitera que responsabilidade e culpa são termos jurídicos e que historicamente migraram para o terreno da ética, gerando uma confusão sem tamanho. “O verbo latino spondeo, do qual deriva nosso termo ‘responsabilidade’, significa ‘apresentar-se como fiador de alguém (ou de si mesmo) com relação a algo perante alguém’. Sendo assim, na promessa de matrimônio, pronunciar a fórmula spondeo significa para o pai empenhar-se em oferecer ao pretendente, como mulher, a própria filha (que, por isso era chamada sponsa) ou em garantir uma reparação se isso não acontecesse” (p. 31). Responsabilidade não é um gesto nobre e luminoso, nem ético, mas simplesmente o fato de poder atribuir culpa a alguém que não saldou uma dívida jurídica. Por isso, no direito romano não existe imputabilidade a respeito de si, somente a outrem. Sob essa confusão, Adolf Otto Eichmann, tenente-coronel da SS (esquadrão da elite militar no nazismo), durante o julgamento que desencadeou seu enforcamento, assumiu sua culpa perante Deus, mas não à lei; porque lhe parecia um gesto eticamente nobre. O suicídio de alguns soldados nazistas configura um ato similar, no qual buscam fugir ou isentar-se da culpa jurídica. Entretanto, assumir a responsabilidade por um ato cometido só tem sentido no âmbito jurídico, pois a ética, como diria Spinoza é a doutrina da vida feliz, que não conhece nem culpa, nem responsabilidade.

Todavia, num gesto oposto ao de Nietzsche (além do bem e do mal), Levi deslocou a ética para um lugar aquém donde estamos a pensá-la: para a zona cinzenta. Onde o sub-homem nos interessa mais do que o além-do-homem. Após a experiência dos campos não dá mais para entender a ética nos limites da velha dignidade, de um caráter indefectível, de uma coerência irreparável, tampouco tangenciada pelo nomos que rege a polis. A lei de Auschwitz era ao mesmo tempo rígida e aleatória, os vagões que levavam os deportados abriam duas portas, uma para os campos de trabalho, outra para as câmaras de gás. Não havia informação e nem separação dos “melhores” neste momento. Os que ousavam entender o que acontecia ali ou enfrentavam com coragem heroica a situação assoladora ou morriam antes de obter respostas e resultados. Talvez daí venha o sentimento de vergonha de Primo Levi e de outros sobreviventes que escolheram e resistiram conviver com o lado mais cruel do humano que também estava neles – estava nessa zona cinzenta que une os carrascos e as vítimas.

A figura extrema da zona cinzenta é o Sonderkommando. Um grupo de judeus, escolhidos pelos agentes da SS, encarregados da execução de seus companheiros. “Eles deviam levar os prisioneiros nus à morte nas câmaras de gás e manter a ordem entre os mesmos; depois arrastar para fora os cadáveres, manchados de rosa e de verde em razão do ácido cianídrico, lavando-os com jatos de água; verificar se nos orifícios dos corpos não estavam escondidos objetos preciosos; arrancar os dentes de ouro dos maxilares; cortar o cabelo das mulheres e lavá-los com cloreto de amônia; transportar depois os cadáveres até os fornos crematórios e cuidar de sua combustão; e, finalmente, tirar as cinzas residuais dos fornos” (AGAMBEN, 2008, p. 34). Ter organizado o Sonderkommando foi o delito mais demoníaco do nazismo, pois embaralhou o papel das vítimas e dos algozes, mostrando o sub-humano em cada um de nós.

Um dos sobreviventes que participou do “Esquadrão Especial da Morte” em Auschwitz conta que, durante uma pausa do trabalho, assistiu a uma partida de futebol entre os soldados da SS e os membros do Sonderkommando. Para Agambem essa partida não foi uma pausa de humanidade em frente aos portões do inferno, mas pelo contrário, esse momento de normalidade é o extremo horror do campo de concentração e extermínio. Essa “partida nunca terminou, é como se continuasse ainda, ininterruptamente. Ela é o emblema perfeito e eterno da ‘zona cinzenta’ que não conhece tempo e está em todos os lugares’. Dela provém a angústia e a vergonha dos sobreviventes [...]. Mas dela também provém a nossa vergonha, de nós que não conhecemos os campos e que, mesmo assim, assistimos, não se sabe como, àquela partida que se repete em cada partida dos nossos estádios, em cada transmissão televisiva, em cada normalidade cotidiana. Se não conseguirmos entender aquela partida, acabar com ela, nunca mais haverá esperança” (p. 35).

Referência: 
AGAMBEN, Giorgio. A testemunha. In:______. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 25-48.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Modernidade e Esclarecimento: o tempo no governo racional de si mesmo

Os teóricos da área de humanidades comumente caracterizam a modernidade como um estágio específico do processo histórico nas sociedades ocidentais. Ela é entendida como um acontecimento que gradualmente transformou as maneiras humanas de sentir o tempo, o espaço, a sociedade e a cultura; como também tais sensibilidades foram (e são) transformadoras destes aspectos, num percurso ininterrupto de mudanças. Marshall Berman (1986, p. 16-7) divide a modernidade em três fases: a primeira vai do século 16 ao 18, período marcado pela invenção da imprensa, pelas reformas e contrarreformas religiosas e pelo renascimento cultural, este é um momento em que as pessoas não reconhecem direito as transformações; a segunda fase inicia-se a partir de 1790 com a Revolução Francesa e a Industrial, neste momento as pessoas tem a impressão de viver em dois mundos ainda, o peso da tradição é atravessado pelas espadas da era revolucionária que está carregada por perspectivas de um futuro promissor; a última fase começa no século 20, nesse período a modernidade conseguiu abarcar todo o mundo, o sentimento de viver uma vida de paradoxo e contradição e a experiência de estar num turbilhão de permanente desintegração (e mudança) são agora partilhados por todos, entretanto esse momento também configura a perda da capacidade das pessoas em darem sentido e organizarem suas próprias vidas.

Ora, o modo como Foucault apresenta a modernidade é um pouco distinto. O autor aponta que a modernidade pode ser encarada mais como uma atitude do que como a descrição de um dado período (todavia, para que fique claro, as duas não se excluem). E que atitude é essa afinal e quando é seu início? A modernidade é um modo de atuação em relação a atualidade; uma escolha voluntária que é feita por alguns; “enfim, uma maneira de pensar e de sentir, uma maneira também de agir e de se conduzir que, tudo ao mesmo tempo, marca uma pertinência e se apresenta como um tarefa. Um pouco, sem dúvida, como aquilo que os gregos chamavam de êthos” (FOUCAULT, 2006, p. 342). O autor acredita que o início, ou o principal limiar da atitude moderna, pode ter ocorrido com o exercício feito por Kant quando escreveu um texto tentando responder a pergunta lançada por um jornal alemão do século 18: O que é o Esclarecimento? Foucault retorna então a este texto para fazer considerações precisas acerca da modernidade. Tentaremos precisar aqui a questão que creditamos maior importância: o uso da Razão e da História como práticas de liberdade.

A maneira como Kant coloca o problema do Esclarecimento aparece como um senso negativo: é uma “saída”, uma “solução”, não uma simples definição. Essa “saída” através do Esclarecimento é o processo que nos liberta do estado de menoridade. Completar 18 anos? Não, né! Não tem a ver com idade cronológica, a menoridade é o estado que nos faz aceitar a autoridade de outro para nos conduzir. E aqui, Kant dá três exemplos: 1º, quando o livro toma o lugar do entendimento, quando não se reflete sobre ele e simplesmente se aceita o que nele tem – podemos descrever o modo como a Bíblia é tratada por alguns. 2º, quando o orientador espiritual toma o lugar da consciência, mais uma vez, nesta situação a pessoa aliena sua “vontade” e capacidade de refletir por si mesma. 3º, quando um médico decide em nosso lugar a dieta – quer dizer, você pode aceitá-la, mas não sem questioná-la e perceber que ela é benéfica a si independente da autoridade do profissional, portanto, estará apto para assumir sua responsabilidade pelas escolhas que fizer. Em última instância, o Esclarecimento é definido pela modificação da relação preexistente entre a vontade, a autoridade e o uso da razão. Apesar do acontecimento do Iluminismo e de nos julgarmos seres racionais, podemos questionar, partindo da leitura de Kant: somos mesmo esclarecidos?

Cabe aqui fazer duas considerações sobre as proposições kantianas. Essa saída da menoridade é um fato a se desenrolar, mas também uma obrigação, pois o homem é o responsável por seu estado de menoridade. Por isso, é uma mudança que ele deve operar em si mesmo com uma máxima, uma palavra de ordem: “tenha coragem, audácia de saber”. A condição do homem chega à maioridade quando a regra que dizia “obedeçam e não raciocinem” (Kant usa o serviço militar como exemplo), altera-se para “obedeçam e vocês vão poder raciocinar o quanto quiserem”. Por último, é preciso salientar que essa Razão, a qual Kant se refere, não é a da técnica, não é a que está dirigida a construção ou gestão de algo, ou seja, ela não é instrumental, mas sim ontológica, possui um fim em si mesma – é a razão autocrítica que nunca cessa, pois não há um ponto de chegada; essa prática de liberdade precisa ser feita a todo instante, tendo em vista que é uma conquista que se perde sem o exercício constante.

Agora que já falamos da Razão, o que tem a ver o tempo e a História nesse processo de busca pela maioridade? Sejamos claro, não é qualquer método de utilização e reflexão da história que é caro a esse exercício crítico-filosófico libertário. Foucault diz que Kant usa a história (especificamente e somente neste texto sobre o Esclarecimento) para pensar o presente de um modo inteiramente distinto dos três modos já conhecidos. 1º) Não é como Platão em O político, no qual os interlocutores acreditam estar no meio de uma dessas revoluções que fazem o mundo girar para trás, por participarem de um momento de decadência na “política” ateniense. 2º) Não é como Santo Agostinho que interroga o presente para tentar enxergar os sinais de algo que está prestes a acontecer. 3º) Não é, por último, como Vico que vê seu presente como o ponto de transição na direção da aurora de um mundo novo. Segundo Foucault (2008, p. 337), geralmente Kant colocava a história através de questões sobre a origem ou para definir a finalidade anterior de um processo histórico. Mas, nesse texto “ele se refere à pura atualidade. Ele não busca compreender o presente a partir de uma totalidade ou de uma realização futura. Ele busca uma diferença”. Essa diferença é uma tarefa filosófica particular em que situa a atualidade no processo de maioridade do qual cada um é responsável por ele – e pelo seu.

Na mesma perspectiva, Foucault (p. 342) dialoga com o poeta Baudelaire para apontar o seguinte sobre a modernidade: ser moderno não é simplesmente aceitar a contingência dela, mas assumir determinada atitude em relação a esse movimento; esse exercício é uma “atitude voluntária, difícil, consiste em recuperar alguma coisa de eterno que não está além do instante presente, nem por trás dele, mas nele”. Podemos nos inspirar em Agamben (2009, p. 72) e igualarmos o moderno ao contemporâneo, como aquele que percebendo o escuro do presente, também apreende a resoluta luz do seu tempo; “aquele que dividindo e interpolando o tempo, está a altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação a outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de ‘citá-la’ segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder. É como se aquela invisível luz, que é o escuro do presente, projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora”.

Num tom pessimista e desconfiante, Foucault nos questiona se a modernidade foi a constituição e o desenvolvimento do Esclarecimento ou se marcou o ponto em que dele nos distanciamos. Parece-me que a opção pessimista é a mais possível. Por isso a história é de importância cabal nesse processo de reflexão. O autor, então, propõe uma pesquisa histórica crítica que percorra os “acontecimentos que nos levaram a nos constituir e a nos conhecer como sujeitos do que fazemos, pensamos e dizemos”. Essa crítica é genealógica em sua finalidade e arqueológica em seu método. Arqueológica e não-transcendental, pois não vai procurar “resgatar” as estruturas universais de qualquer conhecimento ou de qualquer ação moral possível; “mas tratar dos discursos que articulam o que pensamos, dizemos e fazemos como os acontecimentos históricos”. Significa dizer que não existe conhecimento para além de como os descrevemos e entendemos. “E será genealógica no sentido de que ela não deduzirá da forma do que somos o que para nós é impossível fazer ou conhecer”. Ou seja, se são os homens (e não Deus) que fazem a história, então será preciso compreender como os homens a fizeram-na. “A genealogia deduzirá da contingência [do acaso] que nos fez ser o que somos a possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos” (2008, p. 348). Recusar o mito da origem inevitável!

É necessário retomarmos o limiar do Esclarecimento, retornar à história para construir elementos para as práticas de liberdade através do uso da razão. Por outro lado, não querer fazer dessa proposta uma doutrina salvacionista, entendendo-a apenas como uma possibilidade e não como uma “receita de bolo”. Afinal, o Esclarecimento é a atitude filosófica que problematiza a relação com o presente, o modo de ser histórico e filosófico, e não a fidelidade dos elementos de qualquer doutrina. Cada um deve encontrar suas “linhas-de-fuga” na elaboração de si mesmo.

Referências: 
AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? In:______. O que é contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009, p. 65.
BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
FOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In:______. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento: ditos e escritos, vol. II. Organização e seleção de textos Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 335-351.

sábado, 7 de julho de 2012

Sobre anacronismo

Na tentativa de higienizar o território (teórico e metodológico) para a atuação da história científica, a Escola francesa dos Annales procurou combater alguns “inimigos” da prática historiográfica empreendida até então. Dentre estes inimigos está o anacronismo. Lucien Febvre, por exemplo, define o anacronismo como o pior de todos os pecados dos historiadores. Bloch diz que parecemos mais com nosso tempo do que com nossos pais; e que é dever do historiador compreender os homens de acordo com a época em que eles viveram. No entanto, na busca de cientificidade para a História, os annales acabaram “demonizando” demasiadamente algumas categorias e ferramentas teóricas que eles mesmos utilizavam sem se atentar – ou porque não se davam conta ou porque ignoravam as implicações de algumas escolhas metodológicas para o ofício do historiador.

Os fantasmas da 2ª Guerra Mundial:
Técnica de manipulação de fotos que mistura
 temporalidades, desenvolvida por Sergey Larenkov
Mas afinal, o que é anacronismo? O anacronismo é um desencontro, ou um encontro sem cabimento; onde valores, hábitos, crenças de épocas diferentes são tratados como se fossem as mesmas coisas. No ofício do historiador ele acontece quando se atribui sentimentos, pensamentos e comportamentos a períodos históricos distintos. Por exemplo, cometeríamos anacronismo se tratássemos o relacionamento homoerótico entre homens pagãos na antiguidade grega, como se fosse a mesma coisa que o de casais homossexuais em nossa contemporaneidade. Para complicar, Bloch percebeu uma dificuldade recorrente no trabalho de historiar quando disse que os homens mudam constantemente seus valores culturais, mas não mudam seu vocabulário em sincronia e nem com a mesma frequência. Ou seja, as mesmas palavras podem ser usadas para expressarem coisas completamente diferentes por estarem presentes em tempos dessemelhantes. Para além dessa discussão e do entendimento clássico de anacronismo (exposto acima), procuraremos apresentar agora algumas problematizações sobre o assunto nos apoiando em leituras de Rancière e Agamben, sob dois eixos principais: a autoridade do historiador; e a recorrência à poética e à Providência para construção do discurso historiográfico.

A primeira questão se desdobra quando perguntamos: quem é capaz de decidir que coisa (pessoas, sentimentos, valores, hábitos, significados, etc.) tem ou não ligação com um determinado tempo histórico? O historiador. Quer dizer que esta pessoa vai julgar também o que é ou não anacrônico? Sim. Mas – poderíamos perguntar – por quê? Ora, o historiador é o profissional designado e reconhecido para cumprir este tipo de função, porque foi capacitado com recursos técnicos (teórico-metodológicos) precisos para determinar o que cabe a cada parte no tempo. Outros “profissionais” que também escrevem sobre história, como jornalistas, literatos, sociólogos, filósofos e políticos, utilizando-se dos mesmos recursos poderiam cumprir igualmente esta tarefa; isto garantiria sua(s) autoridade(s) no ramo: a autoridade sobre o tempo. Esta seria uma possível resposta (simplificada) dos herdeiros dos annales. Em suma, isso significa que a noção de delimitação sobre o anacronismo está intimamente ligada a uma dimensão de controle político do saber e do poder.

“O anacronismo é assim chamado porque o que está em jogo não é apenas um problema de sucessão. Não é um problema horizontal da ordem dos tempos, mas um problema vertical da ordem do tempo na hierarquia dos seres. É um problema de partilha do tempo no sentido ‘da parte que cabe a cada qual’” (RANCIÈRE, 2011, p. 23). A questão é que não existe uma hierarquia na ordem dos tempos, nem uma determinação de fora sobre o que concerne a cada época e o que as separa uma da outra. Todo este trabalho é feito por uma pessoa que está, por sua vez, inserida também num determinado tempo, “sofrendo” pressões sociais, políticas e culturais que são exercidas sobre sua consciência e seu agir. O anacronismo é um pecado para o historiador, sobretudo porque ele desordena e desafia o trabalho de organização do tempo, rompendo com a superioridade hierárquica daquele que é reconhecido para tal função. Em última instância, o an-acronismo está para o tempo como a an-arquia está para política; não porque representa o caos, mas porque reconfigura a possibilidade do qualquer um, mostrando que atrás da ordem (aparente) existe uma desordem existencial que, paradoxalmente, torna praticável a empreita de “organizar” e “dar sentido” cronológico. Lembro-me de uma passagem de O desentendimento na qual Rancière diz o seguinte sobre a crítica anti-igualitária de Platão:

“A ‘igualdade’ que os chefes do partido popular deram ao povo de Atenas é para ele [Platão] apenas a fome nunca saciada do cada vez mais: cada vez mais portos e navios, mercadorias e colônias, arsenais e fortificações. Mas ele sabe muito bem que o mal é mais profundo. É que, na Assembleia do povo, qualquer sapateiro ou ferreiro possa levantar-se para dar sua opinião sobre a maneira de conduzir esses navios ou de construir essas fortificações e, mais ainda, sobre a maneira justa ou injusta de usá-los para o bem comum. O mal não é o cada vez mais, mas o qualquer um, a brutal revelação da anarquia última que repousa toda hierarquia” (1996, p. 30). A legitimidade do discurso de um historiador sobre o passado ou até mesmo por um político que planeja um projeto grandioso se apoiando nesse tipo discurso (como o da raça ariana no nazismo) passa diretamente pela ligação com as instâncias do poder político e/ou pelo reconhecimento de uma comunidade sobre a validade de sua elocução discursiva. E é desta maneira que o anacronismo coloca uma problemática que atravessa o âmbito dos que mandam e dos obedecem.

Jacques Rancière (Argélia, 1940)
O sentido de obediência aparece novamente em outra dissonância ao anacronismo. Mas, desta vez, relacionado apenas indiretamente a autoridade do historiador. Refiro-me a autoridade do tempo. Pois, se pertencer a uma determinada época é comungar de princípios, senão idênticos, semelhantes ao da sociedade do período em que vivemos, então, aqueles que não procedem de uma mesma forma (mesmo dentro de certas margens de ‘liberdades’ consideradas pelos historiadores) são seres históricos desobedientes de sua época, porque estão a “frente” de seu tempo – são por isso homens anacrônicos. Contudo, para os historiadores que trabalham com a noção hegeliana de “espírito da época” ou de “mentalidades” (inspirada em Durkheim) a proposição “de uma pessoa ser a frente de seu tempo” está fora de cogitação. De acordo com Rancière, foi isso que fez Lucien Febvre na obra O problema da descrença no século 16. Para Febvre, era impossível que Rabelais, um ex-padre e médico humanista, fosse descrente ou ateu, pois seu tempo (século 16) não permitia isso. Sabe-se que Rabelais escreveu livros críticos e satíricos ao pensamento medieval e a determinados comportamentos e tradições religiosas. Mas, para Febvre seria impossível que ele fosse descrente, sendo um anacronismo o uso de tal argumento; pois o historiador dos annales parte de uma descrição de mentalidades coletivas da época pesquisada para explicar o particular – no caso, o pensamento ou a existência individual de Rabelais. Rancière contrapõe que a explicação de Febvre acerca do anacronismo é insustentável, porque o pesquisador não dispõe de materiais necessários para investigar o consciente íntimo de seu objeto (Rabelais). No caso de dizer que não seria possível a existência de uma metralhadora no século 4 a.C. Rancière concorda, haja vista que temos materiais suficientes para verificar tal impossibilidade. Porém, este é um objeto material, agora supor a inexistência de sentimentos e de pensamentos íntimos se torna mais complicado; sobretudo, porque a explicação de Febvre parte do provável e do verossímil para construir uma verdade histórica que é a seguinte: “Durante o século 16 era impossível qualquer um duvidar da existência de Deus”. Não à toa, Rabelais, muito por conta de ter escrito o livro utópico “Faça como queira”, é considerado um precursor do ideal político anárquico, pois sua própria existência coloca em questão a autoridade que pretende dominar o anacronismo. Neste sentido, Rabelais pode ser considerado também um anárquico do tempo, pois sua existência não obedecia a lógica de pensamento hegemônico do período no qual viveu.

O segundo eixo de problematização acerca do anacronismo tem a ver com o uso do recurso discursivo poético (da tradição aristotélica) relacionado à Providência ou a teleologia. A questão é que o discurso historiográfico procura resolver uma questão de verdade e de cientificidade apoiando-se nos instrumentos poéticos e literários; tendo em vista, que a história moderna não quer simplesmente narrar acontecimentos sucessivos, mas construir um todo significante, chamado em grego de symploké. Assim escreve Rancière (2011, p. 27-8): “A teoria da symploké é uma resposta à hierarquia aristotélica entre filosofia, poesia e história. A poesia, nos diz Aristóteles, é mais filosófica do que a história. Com efeito, a história é o domínio do ‘um por um’, que nos informa que uma coisa aconteceu e, em seguida, uma outra. A poesia, por sua vez, é o domínio do geral que dispõe as ações numa só totalidade articulada. [...] Segue-se dessa distinção uma importante consequência, que atrapalha um pouco as honestas teleologias da conquista das verdades da ciência contra as fantasias da ficção poética: a promoção da história como discurso verdadeiro passa pela sua capacidade de tornar-se semelhante à poesia, de imitar por sua própria conta a potência da generalidade poética”.

Para construir um discurso que articula não “do universal para o individual” (como no caso das “mentalidades”), mas do que “particular para o geral”, o historiador utiliza utensílios teóricos poéticos para forjar uma necessidade e uma verossimilhança que abole a ideia de “desordem aleatória” dos acontecimentos; passando estes agora a constituir uma totalidade que entrelaça tempos distintos formando um eterno presente (dentro do texto historiográfico). Isso significa que o historiador, em si, utiliza do próprio anacronismo para amarrar seu texto. Sobretudo, quando escreve sobre o passado, usa verbos no presente do indicativo – o que configura a ‘eternidade temporal’ de seu escrito. Desta maneira, “o regime da verdade da história se constitui, portanto, numa conexão específica entre a lógica poética da intriga necessária ou verossímil e uma lógica ‘teológica’ da manifestação da ordem da verdade divina na ordem do tempo humano” (RANCIÈRE, 2011, p. 28). A noção de Providência, que auxilia para fundamentar uma ordem ‘inevitável’ por trás dos acontecimentos, é construída pelo próprio historiador.

Diante destas tantas complicações sobre o anacronismo o que podemos propor como horizonte a ser visualizado pelos historiadores? Rancière (2011, p. 47) sugere que abandonemos a categoria anacronismo para desatarmos o nó do tempo com o possível e com a eternidade. Para o autor, “o conceito de ‘anacronismo’ é anti-histórico porque ele oculta as condições mesmas de toda historicidade. Há história à medida que os homens não se ‘assemelham’ ao seu tempo, com a linha de temporalidade que os coloca em seus lugares impondo-lhes fazer do seu tempo este ou aquele ‘emprego’. Mas essa ruptura mesma só é possível pela possibilidade de conectar essa linha de temporalidades com outras, pela multiplicidade de linhas de temporalidades presentes em ‘um’ tempo”. Ou seja, existe história porque os ‘tempos’ se misturam, se entrecruzam, se convergem e se distanciam. Pensar essa possibilidade parece um passo importante para romper com a caracterização do tempo como espaço, e pior, às vezes como um espaço coeso e pré-definido.

Agamben (Itália, 1942)
Já a proposta de Giorgio Agamben é pela defesa de uma ética que sirva a qualquer um, independente se historiador ou não, se possuinte de uma consciência histórica (seja lá o que isso signifique) ou não. O interessante para o autor é a possibilidade de dissociarmos de nosso próprio tempo. Por isso, para Agamben, o contemporâneo não é aquele que está encoberto pelas luzes de seu tempo, não é aquele que se assimila demais a sua época. Mas, o que dela consegue se desprender o suficiente para observá-la. Não se deixando ofuscar pelas luzes para conseguir entrever as trevas que acompanham seu presente. Portanto, o contemporâneo é também o anacrônico. Assim, ele caracteriza Nietzsche, um filósofo que escreveu no século 19, mas que seus livros só fizeram sentido algumas décadas depois. O próprio filósofo alemão costumava dizer que havia nascido póstumo (pois não se sentia acolhido totalmente a sua época). Diante dos avanços industriais e do desenvolvimento material do período, exclamava: “só vejo trevas e escuridão”. Talvez suas palavras hoje sejam mais contemporâneas do que em seu tempo.

Fechamos com uma citação de Agamben (2009, p. 58): “Nietzsche situa a sua exigência de ‘atualidade’, a sua ‘contemporaneidade’ em relação ao presente, numa desconexão e numa dissociação. Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo. [...] Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela”.

Referências:

**Discussão feita no grupo de estudos “Os malditos”, na UFU.
AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? In:______. O que é contemporâneo e outros ensaios. Chapecó-SC: Argos, 2009, P. 55-74.
RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon (org.). História, verdade e tempo. Chapecó-SC: Argos, 2011, p. 21-49.
RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: filosofia e política.  São Paulo: Ed. 34, 1996.
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