terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Jogando contra o "patrimônio": Salomon analisa as políticas culturais

Tornou-se recorrente nos últimos anos acompanharmos pelos noticiários uma expansão acentuada de ações governamentais voltadas para o fomento, a preservação e o tombamento de monumentos históricos e patrimônios culturais, desde ambientes ou objetos, como cidades, igrejas, casarões, praças, quadros, estátuas, até práticas e costumes dos mais diversos, como festas, eventos, documentários, procissões, comidas, estilos musicais, etc. Normalmente, acredita-se que estas medidas políticas são apoiadas pelos historiadores, já que intentam num resgate da história a proteção das nossas origens e identidades (culturais) que estão no passado. Entretanto, alguns historiadores enxergam com cautela ou com desconfiança tais práticas políticas, sobretudo porque os interesses em camuflar os conflitos e as diferenças entre as pessoas que habitam o mesmo território, através da criação ou da cristalização de uma identidade comum fundamentada num “totem” físico ou imaterial, são pressupostos básicos daqueles que desenvolvem essa empreitada.

É mais ou menos nesse sentido que o ensaio A danação do arquivo do historiador brasileiro Marlon Salomon procura fazer a crítica aos empreendimentos políticos na criação patrimonial. A primeira intenção das políticas culturais passa pelo reconhecimento que a comunidade precisa, como o próprio nome dela supõe, apresentar algo de “idêntico” (daí, o sentido de identidade) para que seja comungado da mesma maneira por cada parte do todo. Ou seja, algo que integre cada indivíduo como membro de um coletivo, de um grupo. Neste sentido, a política cultural, ao contrário da frase de guerra do imperador Alexandre (“é preciso dividir para conquistar”), é a arte de "reunir para governar". Há nesse regime de políticas culturais uma despolitização da cultura, quer dizer, não se coloca em discussão ou em disputa o que se veicula ou pretende se veicular. A arte e a história deixam de ser múltiplas e subjetivas para se tornarem meios através dos quais a “unidade do todo da comunidade” é possibilitada (p. 30).

Marlon Salomon
Segundo Salomon, há uma especificidade do regime de políticas culturais, surgido por volta de quinze anos atrás, que precisa ser refletido. Este operou uma nova inscrição da arte e da história. Para tais tipos de ação política, a história é apenas um conjunto de manifestações culturais pelas quais a identidade da comunidade é expressa. E perde, por sua vez, a energia da política, do conflito, da desestabilização e da transformação. São essas características, próprias da história, que possibilitam enxergarmos coisas diferentes na medida em que ela é lida, retomada, rescrita, repensada. Em contrapartida, a história se torna o lugar da repetição; onde se “manifestam os eternos traços de seus costumes, com suas festas-símbolo, paredes-símbolo e lugares-símbolo” (SALOMON, 2011, p. 32). Por outro lado, ao mesmo tempo em que essa rememoração é provocada pelas ações das políticas culturais, um instrumento de trabalho da história é esquecido ou escamoteado, o arquivo.

Mas por quê esse desprezo pelo arquivo? Ora, o arquivo, no sentido de que ele ultrapassa o meramente escrito ou impresso, é a confusão da palavra – dele pode-se extrair muitos significados. Os arquivos não são simplesmente os espaços da preservação e da conservação. Não devem, portanto, serem pensados como organismos, ou organização. O arquivo é a dobra (entre o saber e o poder) que deve ser desdobrada pelo pensamento do historiador. A cada investigação, a cada olhar, a cada perspectiva são encontradas novidades, descontinuidades, conflitos e diferenças. O arquivo é o dispositivo fundamental da história. Através dele se produz “o desvio, o singular, o novo; ora, isso é muito diferente de preservar e conservar o mesmo [...]. A imersão no arquivo desarma toda certeza garantida pela ciência e por sua metodologia. Ela não é o encontro com os papéis inertes da história, mas do pensamento com uma potência ativa. Que põe a inteligência em alerta” (p. 34).

Para fazer alusão à negligência governamental aos arquivos, diretamente relacionada às políticas culturais de incentivo e fomento ao patrimônio, Salomon recorre à história do imperador que, ao construir a muralha da China, recebeu de seu conselheiro a ideia de queimar todas as histórias (com exceção das que versavam sobre a dinastia do próprio imperador). O intuito era o de garantir a legitimidade do seu poderio, respaldado numa construção do presente para que a interferência dos “literatos que estudavam o passado para denegrir sua imagem e disseminar dúvida e confusão” fosse suprimida. Ou seja, “entre a glória das obras e a confusão das palavras, o saber e o poder já optaram há muito tempo” pela primeira. Entretanto, a história depende especialmente da segunda, já que sem registro, sem arquivo, se tudo for apagado ou destruído, o conhecimento sobre o passado, que é ininterruptamente atualizado, acaba beirando a fantasia e o delírio. 

Salomon liga o regime das políticas culturais à outra historicidade da contemporaneidade, que é o fim da história. Não o fim da disciplina de história. Mas o fim da compreensão em que a sociedade ocidental se colocou dentro. Ou, melhor dizendo, a maneira pela qual uma dada comunidade se compreende enquanto histórica. É chegado o fim desta época, afirmam tais políticas. Por isso, apagam-se os conflitos da história. O passado, presente nos papéis mortos dos arquivos, já não nos diz respeito. É hora de mostrá-lo em museus como num passeio ao zoológico, no qual contemplamos a animalidade dos protagonistas e rimos dos seus infortúnios como se não tivessem (mais) nada a ver conosco. E pior que isso! Estratificamos os significados do passado. Quer dizer, definimo-lo como um único significado, um único sentido, um acontecimento resolvido do qual supostamente já se julgou e se entrou em consenso. Isso mostra que “não se trata mais da história, mas sim da memória. Ou, antes, de transformá-la em patrimônio. A história converte-se em patrimônio acumulado ao longo do tempo (p. 37)”.

Assim como na história, é feita uma significação bastante problemática do conceito de arte no regime de políticas culturais. Pois, ao entender a arte como uma expressão cultural de um todo, esse tipo de política acaba criando a “figura do produtor cultural, responsável não apenas pela promoção da verdadeira arte que exprime o espírito da comunidade, mas por dizer quem são os verdadeiros artesãos desse ofício e os lugares legítimos de sua manifestação” (p. 38). Há, portanto, uma despolitização da arte, como no caso da história. Aqui, ao invés da arte se confundir com a vida e inventar formas próprias de existência, de governo, de ordem, ela está relegada a afastar-se das “coisas sérias” do mundo, da cena política.

Em contrapartida, “os gestores desse novo sistema anunciam que a promoção da inovação artística é o horizonte em que se legitima esse regime. Mas o que aqui se entende por novidade artística? O que se define como atividade criadora? Se a novidade é aquilo que não se conhece, aquilo que não se espera, o inimaginável, até que ponto esse regime, promotor de uma certa ideia de arte, consegue captá-la? Não seria correto talvez acreditar que, por princípio, esse regime que transforma a arte em expressão dos costumes, de antemão, bloqueia toda novidade criadora? (SALOMON, 2011, p. 38)”.

É neste sentido que a polícia cultural, por exemplo, durante o regime militar no Brasil procurava fazer o controle (censura) das produções artísticas. Sua principal preocupação era com a arte desviante e diferente dos costumes estabelecidos como o “espírito do povo”, a partir dos quais a continuidade do governo e a organização dos corpos (no todo) eram asseguradas. O maior problema para os censores era que a Arte (como um arquivo permeado por palavras, imagens e sons) desviante e exterior ao conjunto de costumes, podia ser atualizada e vivenciada ali dentro, o que desconfiguraria a coesão forjada da comunidade. Sobretudo, porque os indivíduos-membros, compreendidos como peças que desempenham funções determinadas no corpo social a partir de suas “identidades” (como por exemplo, os estudantes, os padeiros, os lixeiros) fossem arrancados dos seus lugares identitários de onde eram autorizados a agirem, para se constituírem como sujeitos políticos (duplos). A partir disso, passarem a fazer não somente aquilo que lhes foi reservado na ordem social: estudar, fazer pães, recolher o lixo. Porém, não serem mais os mesmos, serem outros, serem desviantes, serem novos.

Pitacos Safados!

Concordo com boa parte dos argumentos usados pelo professor Salomon na crítica às políticas culturais. Tanto no que se refere à história, quanto à arte. A arte entendida como representação de costumes comuns, que expressaria o espírito de uma época ou de um povo, soa no tom de Hegel. Pensador que acreditava ser possível identificarmos uma homogeneidade de práticas e de pensamentos coletivamente partilhados. A arte, nessa repetição do mesmo ou do idêntico, perde, a meu ver, sua principal qualidade que é a criação. A criação do novo, do diferente, e não a acumulação amontoada a partir dos recursos materiais que formam uma síntese do que já existia. A arte é imprevisível. Ninguém garante que o artista com os mais avançados materiais e recursos vai fazer algo tão inovador quanto aquele que não tem as mesmas ferramentas. Da mesma maneira, acredito que, se movimenta a história. É o eterno vir a ser. É o novo. (In)felizmente, nossa vã ciência não possui aparelhos ou técnicas para captar isso. Daí, conforme disse Nietzsche, o problema do historiador é que olhando para trás, acaba às vezes acreditando para trás (também). Assim a história fica imóvel. Vira patrimônio. Vira memória. Nada se discute, nem se questiona. Só se lembra e se aceita... e se traumatiza?

A compreensão do conceito de arquivo para Salomon é diferente da dos historiadores, especialmente por causa de seu diálogo claro com Rancière, na Partilha do Sensível, e com Foucault. Porém, creio que se a crítica de Salomon às políticas culturais foi precisa, por outro lado, ele foi otimista demais quanto ao trabalho do historiador. Muitos historiadores não estão longe de corroborar com as propostas políticas da rememoração e do patrimonialismo, alguns, inclusive, participam desses projetos. Tampouco os historiadores acreditam que a história possui uma “função” tão próxima da arte (moderna) de desnortear os saberes, as práticas e os significados cristalizados. Nem creio que eles estão tão inseguros a respeito das metodologias que utilizam para analisar os arquivos (como subentende Salomon). Vejo o contrário, uma sobreposição da teoria-metodológica aos arquivos e aos documentos. 

Jacques Derrida (1930-2004)
Neste sentido, talvez a crítica de Derrida (2001) em Mal de Arquivo sirva como reflexão estendida à disciplina de História. Os historiadores, diferentemente da posição do poeta que pode ser ocupada por qualquer um, se julgam como aqueles que são os detentores de saberes e de técnicas específicas e, mais do que isso, pessoas autorizadas pelo Estado e pela comunidade acadêmica para lidarem com determinados tipos de ferramentas e construírem a verdade a partir dos documentos (e dos arquivos) que apenas eles sabem manipular e interpretar. Aqui a dobra entre o saber (a academia) e o poder (autorização pelo Estado) está mais do que latente na proposta da construção de verdades, que fundamentam o princípio e o governo. Tendo em vista que a palavra portuguesa “arquivo” remete à grega “arkhé” (o princípio e o governo, ou o princípio a partir do qual se tem comando). Arkheion eram os edifícios gregos onde estavam guardados os documentos que norteavam o governo da polis. Os arcontes eram seus vigilantes e os únicos autorizados a interpretarem os arquivos. Será que mudou muito?

Referências:
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relumé Dumará, 2001.
SALOMON, Marlon. A danação do arquivo: ensaio sobre a história e a arte das políticas culturais. In:______. Saber dos arquivos. Goiânia: Ricochete, 2011, p. 30-41.

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