domingo, 23 de setembro de 2012

O que é governamentalidade?

É um conceito inventado pelo filósofo Michel Foucault para analisar genealogicamente como ocorreram os processos históricos que transformaram a questão política da soberania real em governo estatal na modernidade. Sendo mais específico, é possível designar três coisas por governamentalidade.

Primeiro, o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer uma forma bem específica e complexa de poder. Tal poder tem a população como alvo principal, a economia política como forma de saber mais importante e os dispositivos de segurança como instrumentos técnicos. A “arte de governar” da maneira como se apresenta na modernidade altera-se em dois aspectos principais. O soberano (Rei, Imperador ou Príncipe) coloca em segundo plano o uso da violência e da autoridade para garantir seu respeito e reconhecimento pelos súditos e para defender seu território, e o modelo de governo deixa de aplicar-se a família para a população.

Todavia, a família será o núcleo principal dentro da população para o qual se reportará as táticas de governo que pretendem obter ações da população – comportamento sexual, (des)estímulo da taxa de natalidade, demografia, planos de consumo. Por isso, há na modernidade (séc. 16) a criação de instituições como escolas, hospitais, prisões, hospícios, asilos que – aliadas às mais antigas, como a família – irão propiciar uma série de ferramentas para o controle, tornando as pessoas sãs e aptas para o trabalho, consumo e reprodução e, ao mesmo tempo, garantindo instrumentos para que a população se governe. É preciso que existam práticas de governo das pessoas por elas mesmas – diminuindo e despersonalizando “a autoridade do grande governante”. Assim, o pai de família, o superior de um convento, o pedagogo e o professor em relação com a criança, cumprem papéis para que o governo seja algo imanente à sociedade e não venha de maneira exterior ou de cima para baixo das mãos do Soberano, do presidente, do “Estado-monstro”...

Michel Foucault (1926-1984)
Até então, a economia tinha um sentido diferente do que tem hoje. Significava o governo da casa ou da família. Ou seja, se referia ao papel administrativo desempenhado pelo chefe de família para garantir a provisão desta: riquezas, bens, propriedade, novos integrantes, alianças com outras famílias, comportamento dos membros etc. A “arte de governar” que aparece na literatura moderna, contra a soberania do Príncipe exercida sobre o principado (anti-Maquiavel), pretendia seguir o modelo da família, portanto, a questão era como introduzir esta no interior do Estado. Então, opera-se uma mudança para afastar-se de Maquiavel que defendia que o objeto para o qual se destinava o poder soberano era o território e as pessoas que habitavam esse território. Na literatura anti-Maquiavel (Adam Smith, por exemplo) trata-se de governar não o território nem os homens que nele moram, mas as coisas. Que coisas? “Os homens em suas relações, seus laços, seus emaranhamentos com essas coisas que são as riquezas, os recursos, as substâncias, o território, com certeza, em suas fronteiras, com suas qualidades, seu clima, sua aridez, sua fertilidade; são os homens em suas relações com essas outras coisas que são os costumes, os hábitos, as maneiras de fazer ou de pensar e, enfim, são os homens em suas relações com outras coisas ainda, que podem ser os acidentes ou as desgraças, como a fome, as epidemias, a morte” (FOUCAULT, 2006, p. 290).

Tem-se então uma descoberta. Destas coisas é possível extrair uma ciência: cálculos, estatísticas, projeções, curvas demográficas, quantidade de produção. Neste momento o conceito de “economia” começa a mudar de sentido e passa a significar esse nível de realidade que conhecemos hoje, esse saber especializado, uma disciplina. Com isso, torna-se de importância cabal para a política, que será em tal momento à disposição das coisas (economia política). Mas, e o governo dos homens, como fica? Os homens também podem e são tornados “coisas”, entendendo aqui o sentido que construirão através das relações que tiverem: o homem vira sujeito a partir da ação que pratica e quando esta se encontra com o saber sobre esse tipo de ação. Esse saber detém uma determinada estratégia para lidar com a situação.

Por exemplo, um homem qualquer rouba uma loja e assassina o dono. Sem um saber chamado Justiça Criminal esse homem é simplesmente “um homem que roubou e matou”. Se ninguém descobrir o acontecido ele só será “isso” (alguém que matou e roubou) para ele mesmo e de acordo com sua consciência. Mas se alguém que “aceitar legítimo” a Justiça Criminal, ou um representante direto dela, pegá-lo em flagrante e denunciá-lo, ele será um suspeito de latrocínio (roubo seguido de morte) e levado a julgamento. A partir daí, a opinião pública motivada pelos veículos de tevê podem “sujeitá-lo” – torná-lo sujeito –, “ele é criminoso”, vão dizer. Depois de sua condenação, então ele será também outro sujeito, além de criminoso, agora presidiário. Diante de outro saber, co-extensivo ao criminal, a Justiça Penal, ele será um sujeito criminoso, presidiário, condenado – um homem que praticou um crime contra o patrimônio e contra a vida e foi julgado e condenado. Como presidiário ele se torna um sujeito e objeto, pois está passível de receber o tratamento adequado de acordo com um tipo de saber da esfera penal. A relação o fez tornar-se sujeito-objeto ao qual o governo dispõe coisas: direito à escola, ao trabalho, ao psicólogo, ao médico para que ele se “recupere” e reintegre o convívio. O cidadão-comum, ou representante da lei que denunciou o homem que cometeu o roubo-assassinato, está tão “governamentalizado” quanto o presidente da república, pois um determinado saber que pronuncia “quem comete um ato desses deve ir para a cadeia”, o penetrou – são os chamados micro-poderes que nos governam e nos fazem governar. Mas isso não significa que este “dedo-duro” aja da mesma maneira em uma situação parecida, por isso Foucault prefere tratar os sujeitos como não cristalizados ou essencializados, mas produzidos de acordo com a ação que praticam.

Essa longa digressão foi importante para deixar os outros termos relacionados à “governamentalidade” mais claros, tendo em vista que eles se entrecruzam. Seguindo... Segundo, é a tendência no Ocidente que não pára de conduzir em direção ao relevo (acúmulo) desse tipo de saber que se pode chamar de “governo” sobre os outros: soberania, disciplina. Isso levou toda a uma série de aparelhos específicos de governo e também de saberes. Pode ser entendido como uma espécie de racionalização (relativo à razão) nas sociedades ocidentais o processo de inscrição do governo, transmitido e vivenciado, nos hábitos e nos costumes. Há um certo tipo de circularidade entre os governos moral, econômico e político. Sendo que o primeiro está ligado ao governo de si mesmo, o segundo a família e o terceiro ao Estado. Estes governos dialogam, se chocam, se interligam, havendo várias modalidades de governo dentro do âmbito social, que não é diretamente controlado do alto do controle político de um país. Aliás, Foucault chama atenção para o que dá sustentação ao “poder político”: são os outros poderes, que só podem ser separados esquematicamente. O surgimento do Estado como entendemos hoje, é apenas um desdobramento destes outros poderes, sem os quais não seria possível a existência do Estado. Por isso, o interesse de Foucault, em suas últimas obras, sobre o sujeito-ético, ponto-chave para qualquer proposta de alteração macro-política. O poder deixa de ser uma interdição, uma repressão e uma negação, como é entendido pelas principais análises nas humanidades, e passa a significar uma positividade.

Terceiro, e último, governamentalidade é o resultado do processo pelo qual o Estado de Justiça da Idade Média, tornado Estado Administrativo nos séculos 15 e 16, encontrou-se, pouco a pouco, “governamentalizado”. A genealogia do Estado de governo, que tem a população como seu alvo e exerce seu poder através dos dispositivos de segurança, pode ser desenvolvida em três limiares (começos): a pastoral cristã, a nova técnica diplomática-militar e a polícia (p. 305). Mas isso é assunto para outro momento!

Referência:

FOUCAULT, Michel. A “Governamentalidade”. In:______. Estratégia, poder-saber: ditos e escritos, vol. IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 281-305.

sábado, 15 de setembro de 2012

Foucault, o (pós)estruturalismo e os livros-bombas

Classificar a obra de Michel Foucault de acordo com uma determinada corrente de pensamento é uma tarefa complicada e de resultados imprecisos, sobretudo devido à resistência do filósofo contra rótulos e mecanismos de poder que pretendem localizar uma pessoa, uma obra, um pensamento, de maneira homogênea, dizendo o que ele é e do que ele precisa, ou seja, falando em seu lugar. A própria ideia de “obra” é rejeitada por Foucault, pois esta seria uma construção disciplinar, empreendida pelas ciências humanas, que anula ou obscurece os pontos divergentes, incongruências, diferenças e descontinuidades que acompanham a escrita de qualquer autor. Contudo, tentarei neste post descrever algumas tentativas de classificar a obra de Foucault em torno de um eixo, especialmente, às correntes teóricas estruturalista e pós-estruturalista a partir da discussão suscitada no texto de Hayden White chamado Foucault decodificado: notas do subterrâneo, publicado originalmente em 1973.

White coloca Foucault dentro do movimento estruturalista francês ao lado de Claude Lévi-Strauss, na etnologia, e Jacques Lacan, na psicanálise, por partilhar com ambos o interesse pelas estruturas profundas da consciência humana, sendo que o estudo de tais estruturas deve começar através da análise da linguagem. A concepção de linguagem destes autores está baseada no estruturalismo linguístico de Ferdinand de Saussure. Isso quer dizer que “a distinção entre a linguagem, de um lado, e o pensamento humano e a ação, de outro, deve ser eliminada se desejarmos compreender os fenômenos humanos como eles de fato são, vale dizer, como elementos de um sistema de comunicação” (WHITE, 1994, p. 253).

Hayden White (EUA, 1928)
No estruturalismo francês os fenômenos humanos são considerados, em primeira instância, fenômenos linguísticos porque a linguagem é a possibilidade de chegarmos até eles para desempenhar qualquer tipo de estudo. Assim, a psicanálise de Lacan não estuda diretamente os sonhos, por exemplo, mas primeiro a linguagem com a qual o sonho foi codificado pelo “sonhador”. É preciso deste modo olhar para a linguagem como um sistema próprio de signos que obedecem a regras específicas cuja característica, antes de “significar” algo (nomear e descrever alguma coisa), deve ser compreendida em suas estruturas particulares de funcionamento que, por sua vez, não são as mesmas da realidade à qual pretende se direcionar. É como se ela fosse uma “realidade” a parte, mas que sua utilização nas relações políticas tivesse a pretensão de operar uma dobra de realidades na qual o signo e o referente (a palavra e a coisa) passariam a ser o mesmo.

Para Lévi-Strauss, no âmbito da etnologia, “não basta saber como o homem primitivo nomeia e utiliza, de maneiras diferentes, as várias espécies de pássaros, plantas, animais etc.; cumpre também determinar a modalidade de relações entre o mundo humano e o mundo não-humano em que é efetivada essa operação de nomeação e utilização”. Pois, “os homens sempre significam algo diferente do que dizem ou fazem, e sempre dizem ou fazem algo diferente do que significam. Esse ‘algo diferente’ é dado na suposta relação existente entre as coisas significadas na fala ou no gesto e os signos usados para significá-las. Essa relação, por seu turno, é a ‘estrutura profunda’ que deve ser revelada antes que se possa realizar a interpretação daquilo que o signo quer dizer para a pessoa que o está utilizando. E essa relação, por fim, pode ser especificada pela identificação do modo linguístico em que foi vazado o sistema de signos” (Idem, p. 254).

Assim, no estudo de uma sociedade indígena, por exemplo, o etnólogo estruturalista antes de descrever e interpretar o que se passa ali: os acontecimentos, os gestos, os hábitos, os costumes e rituais, procura compreendê-los como um sistema de comunicação que faz sentido dentro da sociedade que os pratica, investigando os modos linguísticos através dos quais essas práticas ganham significado. Por exemplo, a ideia de verdade e de mentira é abolida. Não cabe julgar se existe ou não um espírito dentro das árvores como creem algumas sociedades indígenas, mas descrever as modalidades linguísticas da comunidade (escritas, orais, imagéticas ou gestuais) que tornaram possível que um espírito habitasse o interior das árvores. Apenas desta maneira – isto é, descrevendo as regras particulares de funcionamento da realidade de uma dada comunidade – é que o pesquisador poderá compreender as relações sociais e culturais entre as pessoas que compõe a sociedade pesquisada.

Gilles Deleuze (de perfil), Sartre (ao fundo) e Foucault
No geral Foucault concorda com os postulados estruturalistas. O que torna o filósofo um pós-estruturalista (ou até mesmo um antiestruturalista) é que ele lança a teoria estruturalista contra ela mesma, ao dizer que ela, assim como todo o saber ocidental, não passa de uma constituição comunitária encarcerada nos seus próprios modos de discurso. Esta não seria portanto uma “realidade mais real” que a dos indígenas, mas apenas diferente na medida em que possui outro modelo de funcionamento. “O estruturalismo, assinala, na opinião de Foucault, a descoberta, por parte do pensamento ocidental, das bases linguísticas de conceitos como ‘homem’, ‘sociedade’ e ‘cultura’, a descoberta de que esses conceitos dizem respeito, não a coisas, mas a formas linguísticas que não tem referentes específicos na realidade” (idem). Foucault expõe a fratura completa entre as palavras e as coisas e procura investigar como as instâncias do poder na modernidade inauguraram as ciências humanas para que estas funcionassem como formas de controle e de governo de tudo que pensamos, dizemos e fazemos. Então, o autor quer entender quais as regras de funcionamento da realidade que tornaram possível a existência da própria realidade e de nós mesmos; e por isso utiliza o método arqueológico como uma espécie de escavação dos enunciados inscritos nos discursos feitos no passado, que constituem o "arquivo" do que pensamos, dizemos e fazemos, ou seja, daquilo que somos. Para o filósofo, assim como acontece com os índios, a nossa realidade não é nada além daquilo que fazemos, dizemos e pensamos ser.

Foucault quer se afastar de um pressuposto da modernidade, surgido a partir do século 16, segundo o qual a “ordem das coisas” seria perfeita se encontrássemos a “ordem das palavras”. Esse pensamento acreditava que a linguagem era um instrumento de representação da realidade de valor neutro, transparente e não-histórico. O estruturalismo deu a possibilidade de as ciências humanas (como a ciência política, a sociologia, a economia, a psicologia, a história etc.), fundamentadas de acordo com esse pressuposto moderno, se atentarem para a linguagem; percebendo-a agora como uma coisa dentre todas as coisas do mundo e não mais acima delas e as significando (a linguagem possui, portanto, uma história, uma fabricação humana com marcas e interesses). E o pós-estruturalismo usou o estruturalismo contra ele mesmo, para dizer que as regras da realidade que tornaram possível a formalização de um saber disciplinar como este, é atravessado por modelos linguísticos que não estão ligados a uma realidade acima de qualquer ficção inventiva da nossa própria sociedade. Por outro lado, é a partir, e não apesar, destas “invenções de realidade” que novos objetos, saberes e palavras podem surgir. Por isso o pós-estruturalismo dá um passo adiante ao estruturalismo, pois enquanto o último compreende a sociedade dentro de um sistema fechado de símbolos, o que de certa maneira nega a possibilidade (ou liberdade) das pessoas e grupos criarem novas coisas e novas modalidades de realidade, o primeiro pretende desconstruir a colagem das palavras com as coisas para que outras possibilidades de mundo e de existência sejam possíveis.

Mas pode-se dizer: partindo do pressuposto básico do pós-estruturalismo de que as palavras não são as coisas, mas constituem níveis de realidades distintos que somente se encontram devidos a estratégias de conceitualização operadas no campo do saber-poder, então a obra de Foucault também não significa nada além do mundo inventado por sua própria escrita, sendo ela autorreferente (aponta para si mesma e não para o fora). Bom, talvez isso explique porque Foucault dizia em entrevistas que escrevia ficção (assim como os outros saberes que ele atacava). Contudo, sua ficção tinha um valor de utilidade preciso. A negação da “realidade” de sua “teoria” só é possível se concordarmos que ela estava correta, fazendo dela um paradoxo (uma implosão). Em contrapartida, se concordarmos que a obra de Foucault é uma ficção, então todos os outros saberes também o são (uma implosão que, também explode tudo a sua volta). E me parece que era isso que o filósofo queria. Ele queria nos libertar da opressão do que é dito sobre nós e sobre a realidade em que vivemos. Darmos conta de que tudo não passa de uma invenção que quer nos aprisionar, determinar nossa existência, mesmo que nossa consciência acredite tanto nisso que seja tão insegura quanto covarde para desacreditar.

Seus livros então seriam livros-bombas, não mais seriam utilizados para virarem um arquivo cuja função cumpre de guardar uma verdade. Não mais seriam utilizados para continuarmos a reproduzir esta realidade que colocam pessoas dentro de hospícios e prisões. Esses livros cumpririam uma função específica de libertação no momento de sua leitura e depois explodiriam junto com o nome do autor que os escreveu; para que não façamos deste mais um deus entre tantos outros aos quais devemos prestar subserviência e reverência.

Foucault (2006, p. 266) diz o seguinte sobre o papel de sua teoria: “O ideal não é fabricar ferramentas, mas construir bombas, porque, uma vez utilizadas as bombas que construímos, ninguém mais poderá se servir delas. E devo acrescentar que meu sonho, meu sonho pessoal, não é exatamente o de construir bombas, pois não gosto de matar pessoas. Mas gostaria de escrever livros-bombas, quer dizer, livros que sejam úteis precisamente no momento em que alguém os escreve ou os lê. Em seguida, eles desapareceriam. Esses livros seriam de tal forma que desapareceriam  pouco depois de lidos ou utilizados. Os livros deveriam ser espécies de bombas e nada mais. Depois da explosão, se poderia lembrar às pessoas que esses livros produziriam um belíssimo fogo de artifício. Mais tarde, os historiadores e outros especialistas poderiam dizer que tal ou tal livro foi tão útil quanto uma bomba, e tão belo quanto um fogo de artifício”.

Referências:

FOUCAULT, Michel. Diálogo sobre o poder. In:______. Estratégia, poder-saber: ditos e escritos, vol. IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
WHITE, Hayden. Foucault decodificado: notas do subterrâneo. In:______. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994, p. 253-284. 

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Os anarquistas não votam! Por quê?

Os anarquistas praticam e defendem o abstencionismo político por uma série de motivos: rejeição à política institucionalizada; necessidade de abolição do Estado; desconfiança na índole do sujeito que adquire autoridade sobre os demais; desacordo à representação dos interesses e anseios, logo, à democracia representativa; e crítica ao sufrágio universal que pressupõe a existência de uma “vontade geral”.

Talvez esta seja a posição que melhor marca a diferença do anarquismo moderno para as demais correntes de “esquerda”. A briga entre Karl Marx e Mikhail Bakunin (nos anos de 1868 a 1971) dentro da Primeira Internacional tem uma parcela de causa devido a essa estratégia específica do anarquismo[1]. Enquanto Marx advogava em favor da necessidade de constituição de um único partido operário para disputar as eleições na política liberal, Bakunin e outros coletivistas revolucionários eram contra e pregavam a autonomia das federações que integravam a Associação Internacional dos Trabalhadores. Engels disse então que Bakunin estava disseminando a anarquia (num sentido pejorativo) nas fileiras operárias. Porém, a negação da participação nas eleições, votando ou se candidatando, e o respaldo no federalismo foram ideias anarquistas que Bakunin retomou de Proudhon, falecido em 1865; e que, tempos depois, passariam a integrar a tradição política do anarquismo.

J. Cubero (Brasil, 1926-98)
Mas como pode um movimento político ser, ao mesmo tempo, antipolítico? Nesse caso, como explicou o anarquista brasileiro Jaime Cubero (2003), é preciso destacar a diferença existente entre o conceito de poder político e de poder social. O primeiro é coação, uma ou mais pessoas “obrigam” (de maneira coercitiva ou violenta) outras a fazerem o que não querem. As mesmas ocupam o governo do Estado, o Kratos, que é o poder político no sentido grego. Por exemplo, que integra palavras como autocracia, aristocracia, teocracia, democracia... Os anarquistas lutam contra este poder hipertrofiado nos Estados. Em contrapartida aceitam o poder social, que é o poder participado e exercido por todos nas decisões coletivas através de práticas de autogestão. É o poder de uma assembleia fazer deliberações sobre ela mesma.

Rocker (Alemanha, 1873-1958)
Por isso, a política é entendida, grosso modo, como a arte de manipular o povo, tendo em vista que este não decide nada além de quem vai decidir em seu lugar. Contudo, é necessário questionar: para os anarquistas não existem pessoas honestas ou suficientemente capazes de exercerem a administração das coisas e o governo dos homens? Os anarquistas agem desta maneira porque são pessimistas demais? A segunda eu responderia que não, pelo contrário. E a primeira é uma questão mal colocada. Por quê? Ora, porque o problema não são, em suma, as pessoas, mas a máquina estatal e o modelo governamental. Os anarquistas acreditam que as pessoas podem mudar conforme o meio no qual elas vivem. A proposta ou a intenção de ocupar um cargo estatal para, finalmente de lá dentro, transformar as coisas, despertar a liberdade e estimular a igualdade é um engano tolo ou uma ação traiçoeira. Rudolf Rocker (2005, p. 15), um anarquista alemão, escreve o seguinte: “não se pode transformar um órgão de opressão social [o Estado] em um instrumento de libertação do oprimido, assim como não se pode ouvir com os olhos”.

Reclus (França, 1830-1905)
Para os anarquistas, o Estado cumpre uma função específica na sociedade moderna: a de assegurar a dominação política e manter os benefícios econômicos para a classe que detém seu controle. Tal crítica foi direcionada aos comunistas que desde Marx pretendem fundar um “Estado Popular”, mas governado por um grupo de homens supostamente mais inteligentes e mais capazes (vanguarda) que os demais. E se operários ocuparem este cargo? Bakunin (2006, p. 128) considera que “certamente [se transformarão em] antigos operários que, no momento em que se tornarem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e passarão a olhar o mundo proletário do alto do Estado; não mais representarão o povo, mas a si próprios e suas pretensões de governá-lo”. Para Élisée Reclus, anarquista francês do séc. 19, “a atmosfera do governo não é de harmonia, mas de corrupção. Se um de nós for enviado para um lugar tão sujo, não será surpreendente regressarmos em condições deploráveis” (s/d, online).

Bakunin (Rússia, 1814-1876)
É comum dizerem por aí que caso eu não vote, ou caso eu vote nulo, estarei deixando que os outros decidam por mim. Como os anarquistas analisam essa afirmação? Ora, para eles é o contrário. Reclus considera que “votar é alienar seu poder”. É entregar a própria liberdade de decisão nas mãos de outros. Tudo porque são duas situações temporais diferentes. A primeira é a eleição. Único momento, na democracia representativa, que eu posso decidir o que quero. Mas não é "o quê" eu quero, é "quem" eu quero. E me são dadas poucas alternativas de escolha, já que nenhum dentre todos candidatos defende exatamente as mesmas ideias que eu. Mas, tudo bem, eu voto. A partir deste ato eu confiro legitimamente ao candidato eleito o direito de fazer escolhas por mim. O segundo momento é o que faz realmente diferença, ele acontece durante o mandado, na câmara legislativa, no cargo executivo, ou seja, nos lugares onde as decisões sobre os projetos e leis são realmente tomadas. Vejamos! Mesmo que o candidato eleito cumpra 100% das propostas da campanha eleitoral (que foi o que me levou a votar nele), ainda assim aparecerão tantas outras deliberações das quais eu posso ser contrário e ele votar a favor (ou vice-versa). Tudo porque ele não sabe quais são as minhas vontades, meus anseios, meus interesses, minhas dificuldades e, portanto, não pode me representar. Assim, para os anarquistas, apenas existe representação de si mesmo. Só a presença e a participação do original valem, o outro é um engodo.

Proudhon (França, 1809-1865)
Proudhon (2006) é ainda mais radical sobre a questão da representação do Estado ou da sociedade que pretende dizer do que ele precisa e do quanto ele é capaz de produzir. Colocando um problema para o Estado Popular comunista e salientando o choque entre indivíduo e sociedade, ele diz que se os representantes legais não concordarem com o que e o quanto ele pode contribuir, então a “sociedade” termina. E terminará por falta de associados! Se quiserem lhe coagir estarão descumprindo suas promessas de liberdade, igualdade e fraternidade – da mesma maneira que o liberalismo fez. Os ditos candidatos populares agem mal ao “exigir a emancipação da plebe e aceitar em nome da plebe um tipo de eleição que termina exatamente por torná-la facciosa ou muda. Que contradição! Portanto, nada de representantes, nada de candidatos!” (PROUDHON, 2008, p. 128).

É também por se basearem no princípio de que as vontades não são representadas que os anarquistas condenam o sufrágio universal. Este, que é sinônimo ao direito de todos poderem votar, pouca diferença faz na emancipação social se a democracia, em vez de direta e autogestionária, é representativa. Comumente a propaganda pelo voto (e sua importância na democracia) diz que é preciso escolher bem os candidatos, pesquisá-los a fundo. Porém, Proudhon (2008, p. 91) escreve o seguinte: “não acredito de maneira alguma, justificadamente, nesta instituição divinatória da multidão, que a faria discernir, logo de imediato, o mérito e a honorabilidade dos candidatos. Os exemplos são abundantes em personagens eleitos por aclamação e que, sobre as bandeiras em que se ofereciam aos olhos do povo arrebatado, já preparavam a trama de suas traições. Entre dez tratantes, o povo, em seus comícios, quase que não se encontra um homem honesto...”

Kropotkin (Rússia, 1842-1921)
A descrença no sufrágio universal é ainda maior em Peter Kropotkin, que complementa Proudhon. Para ambos o sufrágio universal acaba legitimando que tudo possa proceder pelas mãos das autoridades garantidas pelo voto, através do pressuposto de estarem atendendo a “vontade geral” ou, pelo menos, da maioria. Kropotkin nem acredita que o sufrágio universal seja um direito político, pois entende que o direito político é “um instrumento para salvaguardar a independência, a dignidade, a liberdade daqueles que ainda não tem a força para impor aos outros o respeito deste direito” (2005, p. 45). Enquanto isso o sufrágio serve em algumas ocasiões para a classe dominante se proteger contra as usurpações de seu poder sem precisar recorrer à violência, trocando um governante pelo outro, substituindo “seis por meia-duzia”. Todavia em nada ele pode ajudar a derrubar ou limitar o poder e a dominação sobre os governados. Kropotkin diz que no início a burguesia se opunha ao sufrágio universal com medo do povo usá-lo como uma arma contra os privilegiados. Mas a partir do momento (nas revoluções de 1848) em que perceberam o sufrágio como um meio eficaz de conduzir o povo com autoridade absoluta, passou a defendê-lo.

Pitacos safados!

Já que estamos em ano de eleição surgem muitas dúvidas a respeito do voto nulo. (1ª) O voto nulo resolve? Se considerarmos que o único momento de exercer a cidadania política é votando, então ele não resolve. Aliás, nesse caso, nem votando nulo nem votando num candidato qualquer. (2ª) É verdade que se tiver 50% + 1 de votos nulos a eleição será cancelada e remarcarão outra para daqui 20 ou 30 dias? Mentira. Isso só acontece com a “nulidade” dos votos: erros eleitorais, extravios, corrupções etc. Não se refere aos votos corretos desejadamente “nulos”. (3ª) Votando nulo estarei favorecendo para que o pior candidato se eleja? Isso não faz diferença, pessoal! Afinal, quem garante que os candidatos que têm mais votos são os melhores e mais capacitados? É apenas uma questão de quantidade de votos.

Enfim, é isso! Espero que os autores anarquistas possam ajudar em futuras reflexões políticas.

Referências:

BAKUNIN, Mikhail. Polêmica com Marx. In:______. Textos anarquistas. Porto Alegre: L&PM, 2006, p. 118-131.
CUBERO, Jaime. As ideias-força do anarquismo. Revista Verve. São Paulo: PUC-SP, nº 4, p. 265-277, outubro, 2003.
KROPOTKIN, Piotr. Os direitos políticos. In:______. Palavras de um revoltado. São Paulo: Imaginário, 2005, p. 45-50.
PROUDHON, Pierre-Joseph. Sobre o princípio da associação. Revista Verve. São Paulo, PUC-SP, n° 10, p. 44-74, outubro, 2006.
PROUDHON, Pierre-Joseph. Proudhon e as candidaturas operárias: 1863-1864. In:______. A propriedade é um roubo. Seleção e notas de Daniel Guerin. Porto Alegre: L&PM, 2008, p. 100-132.
RECLUS, Élisée. Por que os anarquistas não votam? Revista Mother Earth. Acessado em: http://www.nodo50.org/aversaoaoestado/porque_os_anarquistas_nao_votam.htm
ROCKER, Rudolf. A ideologia do anarquismo. São Paulo: Faísca, 2005.

[1] Outras razões desta disputa podem ser vistas no post: Cartas contra Bakunin.
.........
Real Time Analytics