sábado, 18 de agosto de 2012

A receita de Marx

O ancião anglo-egípcio Eric Hobsbawm com quase um século dedicado à historiografia marxista continua publicando como se fosse um pesquisador motivado pelas bolsas-produtividade da Capes. No livro lançado ano passado no Brasil, intitulado Como mudar o mundo: Marx e o marxismo, ele reúne uma série de textos sobre a história do marxismo. O segundo capítulo é dedicado a descrever quais foram as inspirações intelectuais na elaboração da obra teórica de Marx e Engels. Tentaremos neste texto resenhar os pontos principais do seu escrito, sobretudo com o intuito de demonstrar, para o público alheio ao comunismo marxista, que Marx não recebeu uma entidade supraterrestre ao escrever. E nem era uma.

Inicialmente Hobsbawm desconsidera que autores como Platão, Campanella e Thomas Morus, e as comunidades dos primeiros cristãos tenham tido alguma relevância na construção da teoria marxista, pois compunham a fase da “pré-história do socialismo” que não inspirou, de maneira legível, os autores do socialismo moderno. Tais autores eram citados na maioria das vezes apenas para dar verossimilhança às propostas políticas ou usados para críticas sociais ao capitalismo, já que este se opunha aos ideais de quase todas as sociedades antigas, sobretudo as de ideologia cristã. Todavia, o título do livro de Morus (A utopia) teve uma importância significativa, tendo em vista que, depois dele, qualquer tentativa de proposta de uma sociedade ideal era descrita como utópica; e em meados do séc.19 utopia tornou-se sinônimo de comunismo. Enfim, vamos logo à descrição das correntes, escolas e acontecimentos que inspiraram Marx.

Socialismo francês – a história contínua do comunismo moderno começa na ala esquerda da Revolução Francesa. Mais especificamente na “Conspiração dos Iguais” de Babeuf. Entretanto, Engels não via com bons olhos esse “comunismo ascético, derivado de Esparta” (como rotulou em Werke), e Marx alegou que era a crueza e a unilateralidade desse comunismo que faziam com que outras doutrinas socialistas (como as de Proudhon e Fourier) fossem contra ele. O comunismo babôvista e neobabôvista foi importante porque integrava a teoria da revolução a uma doutrina da práxis política, organização, estratégia e tática. E porque a partir de 1830 esse movimento atraia os trabalhadores, ao contrário do socialismo utópico. Foi nesse movimento francês que o nome “comunista” foi usado pela primeira vez, por volta de 1840. Marx só se declararia comunista em 1843, antes se considerava “democrata”, palavra com acepção diferente da que temos hoje.

Socialismo utópico – o primeiro a usar o nome “utopia” para significar uma sociedade socialista foi o francês E. Cabet. Hobsbawm utiliza o termo para se referir a pensadores socialistas antes de Marx, mas especificamente a três: Robert Owen, Saint-Simon e Charles Fourier. A importância de Owen se dá por sua crítica inicial à propriedade privada, à religião e ao casamento da maneira como acontecia na época. Além disso, por ser dono de fábrica sua experiência com as relações de produção era maior do que as dos socialistas franceses que, por extensão, não tinham seu senso prático e objetivo. Há tantos pontos de aprendizado com Saint-Simon que ele merece um parágrafo a parte.

Saint-Simon (1760-1825)
Foi de Saint-Simon que Marx tirou a ideia de que os membros da indústria produtiva devem ser os controladores políticos e sociais, aqueles que vão moldar o futuro da sociedade: uma teoria da Revolução Industrial. Para Saint-Simon os fatos sociais são determinados pelo modo de organização da propriedade, a evolução histórica repousa no desenvolvimento do sistema produtivo e o poder da burguesia se apoia na propriedade dos meios de produção. O pensador francês já tentava compreender a história através da luta de classes, de maneira não tão sofisticada como Marx. Por exemplo, a história (simplista) da França era a luta entre gauleses e francos. As relações de dominação substituíram escravos por servos, e depois por proletários. Mais do que isso, era conhecida sua tese de que a política estava submetida à economia, como também da abolição do Estado na sociedade futura, onde “a administração de coisas” substituiria “o governo dos homens”. Tanto para Saint-Simon, quanto para Marx, o Estado significava o governo dos homens, quando houvesse apenas a gestão das coisas na sociedade socialista, o Estado, nesta acepção particular, deixaria de existir. Entretanto, como o próprio Hobsbawm salienta num dos seus textos, Marx não deixou nada claro sobre esta situação, porque se recusava a prever minunciosamente o “momento pós-revolução”. Outras máximas são creditadas a Saint-Simon: “a exploração do homem pelo homem”, “de cada um conforme sua capacidade, a cada um conforme seu trabalho”, “a todo homem deve ser garantido o livre desenvolvimento de suas capacidades naturais”. Enfim, o marxismo deve muito a filosofia saint-simoniana, mas não é possível precisar com exatidão o que é originalmente dele ou o que havia saído de suas leituras. A própria abordagem inédita da “luta de classes” é relativizada por Hobsbawm: “era provável que qualquer pessoa que houvesse estudado a Revolução Francesa, ou que a tivesse vivenciado, descobrisse a luta de classes na história. De fato, Marx atribui tal descoberta aos historiadores burgueses da Restauração Francesa” (p. 37).

Eric Hobsbawm (nascido em 1917)
Engels elogia Fourier por sua crítica ao comportamento burguês e à sociedade burguesa como um todo; sua defesa da emancipação das mulheres; e sua concepção dialética da história. Mas, sua importância principal foi a análise do trabalho. Ele desconfiava da indústria e do progresso como nenhum outro, embora dissesse que “a roda da história” não podia girar para trás. Em tese, Fourier era um pensador individualista que acreditava que se todos os indivíduos fizessem o que sabiam de acordo com suas habilidades e desejos isso causaria uma satisfação geral. O trabalho e o prazer eram idênticos, este, um ponto de aproximação com Marx que entendeu o trabalho como realização do homem – claro numa sociedade sem exploração de classes. Fourier pregava aos indivíduos que liberassem seus instintos e pulsões; como feminista que era, defendia a libertação sexual das mulheres. Todavia, Marx via alguns problemas nos autores utópicos: falta de senso prático que beirava o ridículo, formação de seitas semirreligiosas; não tinham uma classe específica para a qual pudessem divulgar suas ideias; e eram apolíticos, aspecto que não contribuía para que a transformação que acreditavam ocorresse além do simples espontaneísmo na formação de comunas. Os utópicos não superavam os socialistas franceses que defendiam a luta revolucionária e política de classes. Além disso, uma de suas carências era a deficiência na análise econômica da propriedade, algo que os socialistas franceses já tinha feito, ultrapassando o utopismo.

Proudhon – Rousseau já havia dito que a propriedade privada era a causadora da desigualdade social. Contudo, embora esse autor tenha motivado tantos outros a defenderem a igualdade, ele não propunha a socialização dos meios de produção, mas somente a distribuição equitativa. Quem desenvolveu a reflexão mais elaborada sobre a propriedade na época foi P-J. Proudhon. É bem conhecido o elogio de Marx ao filósofo francês Proudhon, assim que leu O que é a propriedade? (1840). Marx chegou a considerá-lo como um dos maiores autores socialistas, devido sua originalidade e por ser um trabalhador. Porém, Hobsbawm relativiza sua importância dizendo que Marx não considerava Proudhon um bom analista da economia política e não tinha nada a aprender com ele; apenas ressaltou seu avanço em relação ao aspecto deficitário dos utópicos, a análise da propriedade. Aliás, diz que Proudhon era “menos” teórico do que os socialistas utópicos. Aqui vemos o ranço que o marxismo de Hobsbawm tem para com o proudhonismo e o anarquismo. Até porque num dado momento o autor é obrigado a considerar que dos filósofos socialistas “pré-marxistas”, Proudhon é o único lembrado ainda hoje mais do que (somente) em teses acadêmicas.

Economia política britânica – o contato de Marx com os autores britânicos se deu por intermédio de Engels. Esse fato proporcionou a Marx certa superioridade aos socialistas franceses que não os conheciam. As teses sobre a Divisão Internacional do Trabalho saíram da observação ao proletariado inglês e do diálogo com o utilitarismo de Jeremy Benthan e, sobretudo com os economistas socialistas inspirados nas ideias de David Ricardo (W. Thompson, J. Gray, J. F. Bray e T. Hodgskin). Os socialistas ricardianos já haviam desenvolvido a teoria da exploração econômica dos trabalhadores (algo bem próximo da mais-valia) através da inspiração da teoria valor-trabalho formulada por Ricardo. Já as crises de periodicidade no capitalismo são embasadas na obra de John Wade de 1835.

Filosofia alemã – essa inspiração é pouco desenvolvida por Hobsbawm. É conhecida a influência do hegelianismo sobre Marx, que disse que viraria Hegel de ponta a cabeça. Alguns teóricos são considerados importantes, como Moses Hess, o primeiro comunista na Alemanha, e principalmente Ludwin Feuerbach, que escreveu a obra A essência do cristianismo fazendo uma análise materialista da religião. Já que as forças produtivas e materiais estavam pouco desenvolvidas na Alemanha em relação a França e Inglaterra, não restava aos pensadores alemães nada mais do que radicalizar as abstrações, na opinião de Hobsbawm.

Máquinas da Revolução Industrial
Acontecimentos – para dar coerência a sua teoria do materialismo-histórico dialético, muitas das ideias de Marx partiram das observações e análises dos acontecimentos na história mundial. Seu estudo sobre a Revolução Francesa é o modelo que serviu de direção para pensar a evolução da história através da luta de classes. Além disso, a formação do proletariado inglês e o desenvolvimento da Revolução Industrial na Inglaterra, país que Marx morou boa parte de sua vida, foram importantes para a tese de que as forças produtivas transformavam a sociedade e, a que via o proletariado como a classe revolucionária por excelência. A partir de 1840 o proletariado surgira como “problema” na literatura.

Dê a Marx o que é de Marx: Hobsbawm tenta defender porque Marx superou os socialistas anteriores ao mostrar três proposições “inéditas” criadas por ele: 1ª) Marx substituiu uma análise parcial da sociedade capitalista por uma análise abrangente, baseada num exame da relação econômica que regia a sociedade. Sua análise ultrapassava os fenômenos superficiais acessíveis à crítica empírica, pois também considerava a atuação de uma “falsa consciência”, historicamente determinada pelas ideologias e motivações de classe, que atrapalhara outras análises. 2ª) “Ele inseria o socialismo no quadro de uma análise histórica evolucionista, o que explicava duas coisas ao mesmo tempo: por que o socialismo surgiu como teoria e como movimento; e por que o desenvolvimento histórico do capitalismo deve por fim gerar uma sociedade socialista” (p. 49-50). Hobsbawm ainda considera que ao contrário de muitos marxistas, Marx acreditava que a nova sociedade não era um produto acabado, mas que continuaria a evoluir historicamente, de modo que somente parte de seus contornos e princípios gerais poderiam ser previstos e projetados. 3ª) Marx “elucidava a forma de transição da antiga sociedade para a nova: o proletariado seria seu executor, através de um movimento de classe empenhado numa luta de classes que só alcançaria seu objetivo através da revolução – ‘a expropriação dos expropriadores’” (p. 50). Esses pontos fizeram o socialismo deixar de ser “utópico” para se tornar “científico”.

Karl Marx
O historiador quer deixar claro que Marx não só superou os outros socialistas, mas também os “suplantou”, os engoliu em sua síntese. A receita de Marx usou a filosofia socialista, o hegelianismo e a economia britânica como ingredientes indispensáveis, além disso, contou com um bom forno, o desenvolvimento histórico da Europa na modernidade, mas sem uma boa mão do cozinheiro na originalidade do modo de preparo essa receita teria sido um fracasso. Contudo, Marx a desenvolveu para aplicar a uma sociedade específica num momento determinado, ou seja, às sociedades que tinham como sua anatomia a economia política. Ele deixou claro que conforme as mudanças acontecessem seria necessário alterar a “receita” também. Daí o grande problema de seus seguidores preguiçosos terem adotado categorias fixas para analisar todas as sociedades dentro de qualquer temporalidade, como se a preponderância da economia fosse um elemento “trans-histórico” aplicável a qualquer situação social.


Referências:

HOBSBAWM, Eric. Marx, Engels e o socialismo pré-marxiano. In:______. Como mudar o mundo: Marx e marxismo. São Paulo: Cia da Letras, 2011, p. 25-52.
HOBSBAWM, Eric. Marx, Engels e a política. In:______. Como mudar o mundo: Marx e marxismo. São Paulo: Cia da Letras, 2011, p. 53-87.


Um comentário:

  1. Oi Munhoz venho te agradece pelas informações e divulgação do texto, fiquei muito feliz pelo apoio e realmente é lamentavel a situação, e sempre que posso venho aqui no seu blog :)

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