sábado, 7 de julho de 2012

Sobre anacronismo

Na tentativa de higienizar o território (teórico e metodológico) para a atuação da história científica, a Escola francesa dos Annales procurou combater alguns “inimigos” da prática historiográfica empreendida até então. Dentre estes inimigos está o anacronismo. Lucien Febvre, por exemplo, define o anacronismo como o pior de todos os pecados dos historiadores. Bloch diz que parecemos mais com nosso tempo do que com nossos pais; e que é dever do historiador compreender os homens de acordo com a época em que eles viveram. No entanto, na busca de cientificidade para a História, os annales acabaram “demonizando” demasiadamente algumas categorias e ferramentas teóricas que eles mesmos utilizavam sem se atentar – ou porque não se davam conta ou porque ignoravam as implicações de algumas escolhas metodológicas para o ofício do historiador.

Os fantasmas da 2ª Guerra Mundial:
Técnica de manipulação de fotos que mistura
 temporalidades, desenvolvida por Sergey Larenkov
Mas afinal, o que é anacronismo? O anacronismo é um desencontro, ou um encontro sem cabimento; onde valores, hábitos, crenças de épocas diferentes são tratados como se fossem as mesmas coisas. No ofício do historiador ele acontece quando se atribui sentimentos, pensamentos e comportamentos a períodos históricos distintos. Por exemplo, cometeríamos anacronismo se tratássemos o relacionamento homoerótico entre homens pagãos na antiguidade grega, como se fosse a mesma coisa que o de casais homossexuais em nossa contemporaneidade. Para complicar, Bloch percebeu uma dificuldade recorrente no trabalho de historiar quando disse que os homens mudam constantemente seus valores culturais, mas não mudam seu vocabulário em sincronia e nem com a mesma frequência. Ou seja, as mesmas palavras podem ser usadas para expressarem coisas completamente diferentes por estarem presentes em tempos dessemelhantes. Para além dessa discussão e do entendimento clássico de anacronismo (exposto acima), procuraremos apresentar agora algumas problematizações sobre o assunto nos apoiando em leituras de Rancière e Agamben, sob dois eixos principais: a autoridade do historiador; e a recorrência à poética e à Providência para construção do discurso historiográfico.

A primeira questão se desdobra quando perguntamos: quem é capaz de decidir que coisa (pessoas, sentimentos, valores, hábitos, significados, etc.) tem ou não ligação com um determinado tempo histórico? O historiador. Quer dizer que esta pessoa vai julgar também o que é ou não anacrônico? Sim. Mas – poderíamos perguntar – por quê? Ora, o historiador é o profissional designado e reconhecido para cumprir este tipo de função, porque foi capacitado com recursos técnicos (teórico-metodológicos) precisos para determinar o que cabe a cada parte no tempo. Outros “profissionais” que também escrevem sobre história, como jornalistas, literatos, sociólogos, filósofos e políticos, utilizando-se dos mesmos recursos poderiam cumprir igualmente esta tarefa; isto garantiria sua(s) autoridade(s) no ramo: a autoridade sobre o tempo. Esta seria uma possível resposta (simplificada) dos herdeiros dos annales. Em suma, isso significa que a noção de delimitação sobre o anacronismo está intimamente ligada a uma dimensão de controle político do saber e do poder.

“O anacronismo é assim chamado porque o que está em jogo não é apenas um problema de sucessão. Não é um problema horizontal da ordem dos tempos, mas um problema vertical da ordem do tempo na hierarquia dos seres. É um problema de partilha do tempo no sentido ‘da parte que cabe a cada qual’” (RANCIÈRE, 2011, p. 23). A questão é que não existe uma hierarquia na ordem dos tempos, nem uma determinação de fora sobre o que concerne a cada época e o que as separa uma da outra. Todo este trabalho é feito por uma pessoa que está, por sua vez, inserida também num determinado tempo, “sofrendo” pressões sociais, políticas e culturais que são exercidas sobre sua consciência e seu agir. O anacronismo é um pecado para o historiador, sobretudo porque ele desordena e desafia o trabalho de organização do tempo, rompendo com a superioridade hierárquica daquele que é reconhecido para tal função. Em última instância, o an-acronismo está para o tempo como a an-arquia está para política; não porque representa o caos, mas porque reconfigura a possibilidade do qualquer um, mostrando que atrás da ordem (aparente) existe uma desordem existencial que, paradoxalmente, torna praticável a empreita de “organizar” e “dar sentido” cronológico. Lembro-me de uma passagem de O desentendimento na qual Rancière diz o seguinte sobre a crítica anti-igualitária de Platão:

“A ‘igualdade’ que os chefes do partido popular deram ao povo de Atenas é para ele [Platão] apenas a fome nunca saciada do cada vez mais: cada vez mais portos e navios, mercadorias e colônias, arsenais e fortificações. Mas ele sabe muito bem que o mal é mais profundo. É que, na Assembleia do povo, qualquer sapateiro ou ferreiro possa levantar-se para dar sua opinião sobre a maneira de conduzir esses navios ou de construir essas fortificações e, mais ainda, sobre a maneira justa ou injusta de usá-los para o bem comum. O mal não é o cada vez mais, mas o qualquer um, a brutal revelação da anarquia última que repousa toda hierarquia” (1996, p. 30). A legitimidade do discurso de um historiador sobre o passado ou até mesmo por um político que planeja um projeto grandioso se apoiando nesse tipo discurso (como o da raça ariana no nazismo) passa diretamente pela ligação com as instâncias do poder político e/ou pelo reconhecimento de uma comunidade sobre a validade de sua elocução discursiva. E é desta maneira que o anacronismo coloca uma problemática que atravessa o âmbito dos que mandam e dos obedecem.

Jacques Rancière (Argélia, 1940)
O sentido de obediência aparece novamente em outra dissonância ao anacronismo. Mas, desta vez, relacionado apenas indiretamente a autoridade do historiador. Refiro-me a autoridade do tempo. Pois, se pertencer a uma determinada época é comungar de princípios, senão idênticos, semelhantes ao da sociedade do período em que vivemos, então, aqueles que não procedem de uma mesma forma (mesmo dentro de certas margens de ‘liberdades’ consideradas pelos historiadores) são seres históricos desobedientes de sua época, porque estão a “frente” de seu tempo – são por isso homens anacrônicos. Contudo, para os historiadores que trabalham com a noção hegeliana de “espírito da época” ou de “mentalidades” (inspirada em Durkheim) a proposição “de uma pessoa ser a frente de seu tempo” está fora de cogitação. De acordo com Rancière, foi isso que fez Lucien Febvre na obra O problema da descrença no século 16. Para Febvre, era impossível que Rabelais, um ex-padre e médico humanista, fosse descrente ou ateu, pois seu tempo (século 16) não permitia isso. Sabe-se que Rabelais escreveu livros críticos e satíricos ao pensamento medieval e a determinados comportamentos e tradições religiosas. Mas, para Febvre seria impossível que ele fosse descrente, sendo um anacronismo o uso de tal argumento; pois o historiador dos annales parte de uma descrição de mentalidades coletivas da época pesquisada para explicar o particular – no caso, o pensamento ou a existência individual de Rabelais. Rancière contrapõe que a explicação de Febvre acerca do anacronismo é insustentável, porque o pesquisador não dispõe de materiais necessários para investigar o consciente íntimo de seu objeto (Rabelais). No caso de dizer que não seria possível a existência de uma metralhadora no século 4 a.C. Rancière concorda, haja vista que temos materiais suficientes para verificar tal impossibilidade. Porém, este é um objeto material, agora supor a inexistência de sentimentos e de pensamentos íntimos se torna mais complicado; sobretudo, porque a explicação de Febvre parte do provável e do verossímil para construir uma verdade histórica que é a seguinte: “Durante o século 16 era impossível qualquer um duvidar da existência de Deus”. Não à toa, Rabelais, muito por conta de ter escrito o livro utópico “Faça como queira”, é considerado um precursor do ideal político anárquico, pois sua própria existência coloca em questão a autoridade que pretende dominar o anacronismo. Neste sentido, Rabelais pode ser considerado também um anárquico do tempo, pois sua existência não obedecia a lógica de pensamento hegemônico do período no qual viveu.

O segundo eixo de problematização acerca do anacronismo tem a ver com o uso do recurso discursivo poético (da tradição aristotélica) relacionado à Providência ou a teleologia. A questão é que o discurso historiográfico procura resolver uma questão de verdade e de cientificidade apoiando-se nos instrumentos poéticos e literários; tendo em vista, que a história moderna não quer simplesmente narrar acontecimentos sucessivos, mas construir um todo significante, chamado em grego de symploké. Assim escreve Rancière (2011, p. 27-8): “A teoria da symploké é uma resposta à hierarquia aristotélica entre filosofia, poesia e história. A poesia, nos diz Aristóteles, é mais filosófica do que a história. Com efeito, a história é o domínio do ‘um por um’, que nos informa que uma coisa aconteceu e, em seguida, uma outra. A poesia, por sua vez, é o domínio do geral que dispõe as ações numa só totalidade articulada. [...] Segue-se dessa distinção uma importante consequência, que atrapalha um pouco as honestas teleologias da conquista das verdades da ciência contra as fantasias da ficção poética: a promoção da história como discurso verdadeiro passa pela sua capacidade de tornar-se semelhante à poesia, de imitar por sua própria conta a potência da generalidade poética”.

Para construir um discurso que articula não “do universal para o individual” (como no caso das “mentalidades”), mas do que “particular para o geral”, o historiador utiliza utensílios teóricos poéticos para forjar uma necessidade e uma verossimilhança que abole a ideia de “desordem aleatória” dos acontecimentos; passando estes agora a constituir uma totalidade que entrelaça tempos distintos formando um eterno presente (dentro do texto historiográfico). Isso significa que o historiador, em si, utiliza do próprio anacronismo para amarrar seu texto. Sobretudo, quando escreve sobre o passado, usa verbos no presente do indicativo – o que configura a ‘eternidade temporal’ de seu escrito. Desta maneira, “o regime da verdade da história se constitui, portanto, numa conexão específica entre a lógica poética da intriga necessária ou verossímil e uma lógica ‘teológica’ da manifestação da ordem da verdade divina na ordem do tempo humano” (RANCIÈRE, 2011, p. 28). A noção de Providência, que auxilia para fundamentar uma ordem ‘inevitável’ por trás dos acontecimentos, é construída pelo próprio historiador.

Diante destas tantas complicações sobre o anacronismo o que podemos propor como horizonte a ser visualizado pelos historiadores? Rancière (2011, p. 47) sugere que abandonemos a categoria anacronismo para desatarmos o nó do tempo com o possível e com a eternidade. Para o autor, “o conceito de ‘anacronismo’ é anti-histórico porque ele oculta as condições mesmas de toda historicidade. Há história à medida que os homens não se ‘assemelham’ ao seu tempo, com a linha de temporalidade que os coloca em seus lugares impondo-lhes fazer do seu tempo este ou aquele ‘emprego’. Mas essa ruptura mesma só é possível pela possibilidade de conectar essa linha de temporalidades com outras, pela multiplicidade de linhas de temporalidades presentes em ‘um’ tempo”. Ou seja, existe história porque os ‘tempos’ se misturam, se entrecruzam, se convergem e se distanciam. Pensar essa possibilidade parece um passo importante para romper com a caracterização do tempo como espaço, e pior, às vezes como um espaço coeso e pré-definido.

Agamben (Itália, 1942)
Já a proposta de Giorgio Agamben é pela defesa de uma ética que sirva a qualquer um, independente se historiador ou não, se possuinte de uma consciência histórica (seja lá o que isso signifique) ou não. O interessante para o autor é a possibilidade de dissociarmos de nosso próprio tempo. Por isso, para Agamben, o contemporâneo não é aquele que está encoberto pelas luzes de seu tempo, não é aquele que se assimila demais a sua época. Mas, o que dela consegue se desprender o suficiente para observá-la. Não se deixando ofuscar pelas luzes para conseguir entrever as trevas que acompanham seu presente. Portanto, o contemporâneo é também o anacrônico. Assim, ele caracteriza Nietzsche, um filósofo que escreveu no século 19, mas que seus livros só fizeram sentido algumas décadas depois. O próprio filósofo alemão costumava dizer que havia nascido póstumo (pois não se sentia acolhido totalmente a sua época). Diante dos avanços industriais e do desenvolvimento material do período, exclamava: “só vejo trevas e escuridão”. Talvez suas palavras hoje sejam mais contemporâneas do que em seu tempo.

Fechamos com uma citação de Agamben (2009, p. 58): “Nietzsche situa a sua exigência de ‘atualidade’, a sua ‘contemporaneidade’ em relação ao presente, numa desconexão e numa dissociação. Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo. [...] Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela”.

Referências:

**Discussão feita no grupo de estudos “Os malditos”, na UFU.
AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? In:______. O que é contemporâneo e outros ensaios. Chapecó-SC: Argos, 2009, P. 55-74.
RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon (org.). História, verdade e tempo. Chapecó-SC: Argos, 2011, p. 21-49.
RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: filosofia e política.  São Paulo: Ed. 34, 1996.

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