terça-feira, 5 de junho de 2012

“Apologia da história” de Marc Bloch: a ciência de historiar

Fuzilado em 1944 pela Gestapo (polícia nazista) durante a resistência francesa contra a invasão alemã na Segunda Guerra Mundial, o autor de Apologia da história ou O ofício do historiador deixou sua obra de metodologia histórica incompleta. Francês e judeu, Marc Bloch que fundou, juntamente com Lucien Febvre, a Escola dos Annales (um marco para a pesquisa histórica) foi um dos mais importantes historiadores de todos os tempos. Neste post, procuraremos percorrer alguns pontos interessantes do livro mencionado.

Logo na introdução existe uma reflexão crucial para o historiador, a de que vivemos numa sociedade histórica. As civilizações ocidentais (gregas e latinas) que antecederam as sociedades modernas eram, segundo Bloch, compostas por povos historiógrafos. O cristianismo é uma religião de historiador. Podemos ver esta questão presente também no trabalho de Hannah Arendt. Contudo, a autora é mais cuidadosa ao distinguir as noções históricas entre gregos e latinos. “A filosofia cristã rompeu com o conceito de tempo da Antiguidade, porque o nascimento de Cristo, tendo ocorrido num tempo humano secular, constitui não só um novo princípio como também um acontecimento único e sem repetição” (ARENDT, 1988, p. 22). Embora os gregos possuíssem culturalmente a história, como mostrou Bloch, o conceito circular estava intrínseco aos ciclos da Antiguidade. Os assuntos humanos nunca eram completamente novos, apenas se repetiam; o que aparecia como algo novo eram apenas os homens das novas gerações; assim, todos estavam predestinados a contemplar um espetáculo natural ou histórico que era sempre o mesmo. Os conceitos cristãos de "História" e de "vida eterna" romperam com esse ciclo.

Entretanto, Bloch adverte com tom pesaroso que as civilizações podem se modificar deixando de ser históricas; pois existe o perigo de jogar a “boa história” no buraco junto com a “má história”. Este trecho marca dois posicionamentos do autor. O primeiro é o tom moralista que acompanha o livro de Bloch; a separação entre os bons e os maus, os verdadeiros e os mentirosos e, logo, os que mandam e os que obedecem. O segundo é a pretensão de que seu livro seja não somente uma introdução aos estudos históricos, mas também uma defesa da legitimidade e da cientificidade da História.

Em seguida o autor trata de estabelecer a diferenciação entre legitimidade e utilidade. A história, para Bloch, não deve ser encarada de modo pragmático como uma ciência técnica que precisa sanar um problema imediato, pois sua utilidade pode ser justificável pelo simples desejo de matar a fome intelectual do pesquisador e do leitor. Isso não exclui que sua “utilidade”, cedo ou tarde, seja nos ajudar a viver melhor. Sua legitimidade encontra a defesa justificada no seu oposto, isto é, a desqualificação e a depreciação da história só servem a um propósito: a ignorância.

Podemos notar que, durante o texto, Bloch procura estabelecer espécies de conciliações mediadas pelo bom senso do pesquisador em história. Opinando numa discussão, datada do início do século 19, sobre se a história é arte ou ciência, Bloch diz que uma não exclui a outra; e é importante que a história se alimente das duas fontes sem cair no extremo de nenhuma delas. Bloch critica seus ex-professores, os historiadores da Escola Metódica Francesa, aos quais se reporta como “positivistas” herdeiros de Comte, pois além de considerarem a História uma ciência menor em relação às ciências exatas (a tal ponto de apagarem sua plausibilidade e originalidade), também fizeram do trabalho do historiador algo tão técnico quanto impossível. A principal crítica de Bloch aos metódicos se refere à crença na neutralidade e no apagamento da subjetividade e intencionalidade do pesquisador durante o uso dos documentos. Bloch defende que a poesia e a imaginação não retiram a “cientificidade” da História, por isso ela pode atender tanto a sensibilidade como a inteligência. Mantendo a coerência com o equilíbrio, o francês tece crítica também aos historiadores alemães que tomam a História como uma espécie de jogo estético ou um “exercício de higiene benéfico à saúde do espírito”. No entanto, apesar da conciliação entre arte e ciência, Bloch é categórico em considerar que a História é uma ciência.

Se toda ciência possui um objeto, qual é o da História? Bloch diz que não é o passado, pois este não é palpável e não é específico a somente uma ciência (a geologia estuda o passado das formações rochosas, a geografia as mudanças climáticas através dos sedimentos, a química a constituição do sol); mas em nenhuma delas o homem (e sua ação) está presente como elemento principal. Portanto o objeto da história são os homens (no plural). “São os homens que [a história] quer capturar. Quem não conseguir isso será apenas, no máximo, um serviçal da erudição. Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está sua caça” (BLOCH, 2001, p. 54). Mas o objeto de pesquisa dos historiadores não é simplesmente "os homens". Além do homem, o historiador pensa também o tempo e a duração. Em última instância, a história é a ciência dos homens no tempo. E esse tempo é, por natureza, um continuum e também perpétua mudança. Ou seja, o tempo não pára, se desenrola, não possui pausa nem ruptura, mas a todo o momento se modifica. Significa dizer que o tempo não é cíclico e repetível, como pensavam os gregos antigos.

Para que serve a História? Novamente aparece uma conciliação. Agora entre passado e presente (solidariedade entre as épocas). Bloch acha que não é possível entender o presente sem estudar o passado, e também não é possível compreender o passado sem estudar o presente (quem conhece ambos sabe agir melhor sobre o presente). Neste caso o historiador quer reconstruir um filme do qual só possui o final (o presente), isto é, o último fotograma está completo e todos os outros estão em pedaços, em vestígios que precisam ser encaixados como as peças de um quebra-cabeças. No ofício do historiador, a primeira condição para interpretar os documentos e formular corretamente os problemas é observar a paisagem do hoje. Aqui uma mudança significativa em relação aos historiadores metódicos que, em vez de interpretarem os documentos, apenas queriam transmiti-los reescrevendo-os.

O vínculo passado-presente é delineado através das trocas culturais com gerações anteriores, pela oralidade e pelos escritos e ocupam funções importantes nas transmissões de pensamento que fazem praticamente a continuidade de uma civilização. É necessário, entretanto, compreender os homens conforme a sua época, pois eles se parecem mais com seu tempo do que com seus pais. Tanto é que Bloch critica o historiador que busca explicar o “mais próximo” pelo “mais distante” (o ídolo das origens). Esse tipo de historiador acredita que a causa (explicativa) está num passado remoto, por isso desce às profundezas antes de compreender o presente e o passado recente, crendo que tudo já estava dado num princípio original. Esse seria um movimento rumo ao infinito, pois assim que chegasse num “ponto originário” precisaria compreender qual foi a causa deste ponto, voltando cada vez mais para trás, atrás de causas das causas.

Quais são as técnicas principais de pesquisa do historiador? Comparação, intuição e bom senso. Bloch compara o trabalho do historiador ao do detetive que tenta reconstituir a cena de um crime sem tê-lo presenciado. Então é através dos testemunhos (todos os tipos de vestígios do passado) que o historiador procura reconstruir a trama histórica. Neste trabalho, ele precisa comparar todos os tipos de documentos. Não apenas recorrer às fontes escritas, mas a todos os resíduos deixados como pistas. Aqui o historiador se mostra "subserviente" às fontes e aos documentos. Afinal sem estes não é possível fazer uma pesquisa histórica. Como, por exemplo, não é possível reconstituir a mentalidade íntima dos homens no Império Merovíngio, porque não existem cartas ou diários particulares na sociedade desta época. Geralmente, os historiadores dão mais créditos aos documentos involuntários, que são os documentos que não foram fabricados para serem repassados a gerações futuras (como guias de viagens “enterradas” nas tumbas egípcias). E questionam ainda mais as intencionalidades dos documentos voluntariamente escritos para o futuro, como o livro Historie, de Heródoto.

Ao fazer um recorte temático e pretender responder a determinadas perguntas, o historiador precisa ter um roteiro para questionar os documentos e fazê-los falarem mesmo a contragosto. Enfim, é preciso saber questionar os documentos, traçar uma direção e um objetivo quando utilizá-los. Informar ao leitor tanto sobre os meios utilizados de pesquisa, como sobre os fins aos quais se pretende chegar é um trabalho necessário que demonstra honestidade intelectual do historiador e que causa prazer nos seus interlocutores.

Entretanto, não existe um tipo certo, preciso e específico de documento para responder a uma determinada pergunta. Todos os documentos são valiosos. Contudo, para cada tipo de documento é necessário usar uma ferramenta adequada para analisá-lo. Por isso, o historiador deve conhecer minimamente as principais técnicas de seu ofício e saber utilizá-las de modo específico para cada tipo de documento.

Além da comparação com outros documentos da época, o historiador precisa a todo o momento utilizar a crítica como elemento de trabalho. Nem sempre é cabível confiar inteiramente em sua fonte ou no documento analisado – nem desacreditar em tudo também. Em busca da mentira e do erro, o historiador precisa estar atento à manipulação de documentos referentes ao autor, à data e ao conteúdo. As cartas assinadas por Maria Antonieta, por exemplo, são falsas porque foram fabricadas no século 19. Tal constatação foi possível ao comparar cartas da época (tipos de papel, desenho das letras e figuras de linguagem). Porém, a mentira também é um testemunho histórico rico para o historiador entender as intencionalidades. O relato do soldado francês Marbot, que diz ter vencido sozinho um batalhão na guerra contra a Alemanha no início do século 19, é uma mentira, pois nada consta do ocorrido nos documentos alemães, nem nos dos soldados franceses. Sabe-se depois que chegou um pedido de promoção militar feito a Napoleão, escrito por Marbot. Além disso, erros inintencionais do próprio contexto podem acontecer frequentemente e, nesse caso, a historiografia recorre a psicologia do testemunho. Sobretudo, para entender como a familiaridade de uma situação pode torná-la invisível pela sociedade que a vivencia, ou mesmo, identificar momentos de pânico, cansaço, medo e angústia que podem atravessar os relatos, modificando-os de diferentes formas. A maioria destes aspectos pode ser compreendida à luz da atmosfera social do período.

A crítica da comparação poderia ser minada pelo argumento de que a invenção, a criação e “o novo” podem não ser considerados verídicos. Como exemplo, um documento afirmando terem inventado o avião na Idade Média, embora não tenham divulgado a invenção. Ou, ainda, terem descoberto a teoria da relatividade (antes de Einstein) no século 18. Nesse caso, Bloch se defende dizendo que mesmo que algo novo seja inventado, criado ou descoberto é preciso que haja vestígios anteriores do passado que demonstrem o avanço capaz de possibilitar o “novo”. Aqui, podemos fazer uma crítica ao “pai dos Annales”. Parece-nos que Bloch ainda se prende a uma noção de história de acúmulo, que só considera o novo como somatória e determinação a partir do antigo. Tanto é verdade que Bloch acredita ter uma vantagem de superioridade para enxergar a totalidade da história em relação aos historiadores antecedentes.

(* Essa resenha se refere somente à Introdução e aos três primeiros capítulos do livro).

Referências:

ARENDT, Hannah. Da revolução. São Paulo/Brasília: Ática/Ed. UnB, 1988.
BLOCH, Marc. Apologia da história ou O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

Leia tambémHistória: arte ou ciência? (post de 01 abr. 2013) 
 

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