quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Foucault nas grades do saber (sobre uma escola de prisão)

Há tempos que não escrevo aqui, mas é que depois de terminada minha experiência de professor na penitenciária, me cobrava algum post sobre tal. Então lá vai!

Por todo esse tempo que trabalhei lá sempre via as pessoas me indagarem com certa curiosidade escrutinada e às vezes maldosa sobre como era dar aulas dentro de uma cadeia. Muitas professoras que lá trabalham fazem pesquisas acadêmicas na área de pedagogia sobre o assunto. E pelo menos uma ou outra me perguntara se nunca tive vontade de fazer uma “análise histórica” sobre a escola na penitenciária. Quando dizia a alguém que trabalhava na cadeia sempre esperava as reações mais inusitadas. A única pessoa que tratou como algo corriqueiro foi um doutor professor da faculdade de educação da UFU durante a apresentação de um trabalho. Achei interessante, sobretudo a interrupção dele no alvoroço causado pelos demais apresentadores que ali estavam: algumas doutorandas, mestrandos e alunos da graduação. Depois fiquei um pouco neurótico tentando imaginar por que ele foi tão diferente. Talvez porque ele era um único a verdadeiramente achar normal, o que confesso não ser para mim. Mas não no sentido de espanto e até de indignação comum das pessoas: “Como? Lá dentro tem uma escola?” ou: “Por que você dá aulas para esses vagabundos? Eles não merecem!”  Pois é, essa última parece frase de um carcereiro, mas é de alguém da família. Mas no fim das contas a primeira frase se parece muito com a segunda. Todas as duas com seus devidos preconceitos e desconhecimentos. Bem iguais aos meus quando entrei lá.

Essa coisa de ter uma escola dentro da cadeia é ideia política de gênio. Ah! As professoras leitores de Paulo Freire e amantes de Gabriel Chalita dizem: “Que coisa maravilhosa! Agora eles vão ter a importância que nunca tiveram, terão oportunidades de andar no caminho certo e do bem”. Oh céus, dê luz a essas criaturas! Aliás, dê um pouco de trevas para enxergarem a penumbra que lhes embaça as vistas! Não é preciso colocar aqui as pseudo-comprovações estatísticas para mostrar que as escolas têm reduzido drasticamente as rebeliões dentro dos sistemas penitenciários. Por quê? As práticas disciplinares das escolas tornam os alunos (presos) mais dóceis. Sem que seja preciso bater, gritar ou algemar. É muito mais eficiente, o poder os penetra e a resistência é mínima agora, pois eles “escolhem” obedecer às normas, às regras, aos ritos escolares para estudarem. Tudo apenas com o uso de uma arma: o saber. Ou seria o mecanismo de poder-saber como Foucault andou dizendo por aí. Esse saber que é tido como uma dádiva divina do grande arquiteto que tudo faz, presente dos iluministas – alguns escravocratas - para nós, fonte de conhecimento, também é frequentemente utilizado nas relações de poder como uma prática das mais inocentes e bem-intencionadas, e por isso perigosas.

Outro dia discutia com um amigo, o Rodolffo, que também dá aula lá, sobre a eficácia desse método. Aliás, chegamos até a cogitar a possibilidade de Foucault estar corretíssimo quando comparou as escolas, os presídios, os hospitais e os hospícios, no sentido de que essas instituições sociais servem para “normalizar”, homogeneizar, docilizar os corpos e os indivíduos, os tornarem aptos para o trabalho e para conviverem em sociedade sem perturbação da ordem pública. É interessante e bastante incômodo ouvir isso, pois coloca lado a lado os profissionais integrantes (que não gostam de ser comparados uns aos outros) destas instituições sociais e seus respectivos saberes: os professores, os policiais/os carcereiros, os médicos e os psiquiatras – a burrice/a ignorância, a corrupção/a desordem, a doença e a loucura: são seus domínios e suas autoridades. Ou seriam suas pragas? É evidente que as coisas “boas” que esses conhecimentos científicos nos trouxeram vieram atreladas a outros “males”. Ou ainda além: que esses males são a condição sem a qual não seria possível utilizar o saber para fazer do outro um objeto: de pesquisa, de ressocialização, de recuperação, de civilização. O que dissemos pareceu de maneira bem semelhante àquela descrita por Foucault, quando se deu o nascimento da prisão coincidindo exatamente com o crepúsculo do "Século das Luzes" e da época de surgimento e de apelação para os direitos humanos. Ou seja, enquanto todos pensavam naturalmente em libertação e desenvolvimento, o filósofo mostrou a ascensão das tecnologias de poder agora sofisticadamente colocadas. 

Talvez seja por isso que ainda não quis pesquisar “cientificamente” nada sobre qualquer aspecto da cadeia ou sobre a escola dentro da cadeia. Porque me parece que nós doutores dos saberes vestimos nossos jalecos brancos, calçamos nossas luvas higienizadas descartáveis e empunhamos nosso microscópio (que no caso do cientista humano é o método) para entrar no laboratório pronto para dissecarmos as cobaias e depois de realizados nos desfazermos delas junto com nossas luvas sujas. Um dia ao sair de sala, vi dezenas de estudantes de direito observando as celas com seus professores universitários e resguardados pelos diretores da segurança, olhavam como se estivessem bem ali em um zoológico, e não é de se estranhar que de fato estavam mesmo. Foi possível ouvir alguém da segurança dizer: “Falam que cadeia só tem preto e pobre, mas aqui é diferente”. Sim, aqui temos macacos também, eu reiteraria! [Inclusive guardando as celas].

Não que eu não tenha a minha curiosidade zoológica sobre eles também. Viram como a palavra “eles” soou como se fossem alienígenas? Pois então, se os tratamos assim porque eles devem nos ver como iguais? Seriam eles melhores que nós? Acho que não. São iguaizinhos! E eu acho que é isso que nos causa mais horror e indignação diante de um crime. Não é o quanto aquilo está longe de nós, mas o quanto aquilo poderia ser feito por nós. Nietzsche uma vez disse que é necessário ter cuidado ao expulsarmos todos os demônios de nós para não expulsar nós mesmos.

O que gostaria de compreender melhor ali dentro, é o modo como as pessoas que escolheram ou foram escolhidas pelo mundo do crime constroem suas identidades a partir dos objetos culturais que fabricamos para eles. Os adjetivos que lhes atribuímos são muitas vezes assumidos e ressignificados. É desta maneira que constituem suas subjetividades. O rótulo de bandido deixa de representar vergonha para se tornar status e autoafirmação em determinados locais. Como é possível mesmo acreditando que roubar é errado e que o caminho dos pecadores é o inferno ainda conseguem encontrar uma base legítima para se chamarem de ladrões e mesmo assim acharem que estão do lado do bem?  E como constroem as máscaras que utilizam para atuarem em espaços sociais diferentes? De que maneira fazem a operação personal para serem bons pais, bons maridos, bons alunos [bom no sentido do que faz bem feito], discutirem futebol, assistir novelas, cantar “ai se eu te pego” e mesmo assim forjarem sua postura “profissional” irredutível quando devem lidar com um inimigo ou devedor? Seriam também bons ladrões - entendendo sob o mesmo sentido utilizado?

De que maneira suas subjetividades religiosas são constituídas? E o quão religiosos são! Às vezes mais do que nossas tias do interior. São cristãos. Assim como o apóstolo matador de cristãos (Paulo) se tornou. “Amai o próximo como a ti mesmo!” Somos os próximos dessas pessoas? Por mais que sejamos, nós mesmos não queremos ser. E eles entendem isso.

Li antes de escrever:
CARVALHO, A. F. de. História e subjetividade no pensamento de Michel Foucault. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. USP, São Paulo, 2007.
FOUCAULT, M. Estratégia, poder-saber: coleção ditos e escrito IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel. Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.
NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Curitiba: Editora Hemus, 2002.
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