terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A função social do Funk carioca

É difícil argumentarmos a favor daquilo que não gostamos. Mas, acredito que o sabor das coisas depende muito mais daquele que saboreia do que das particularidades do saboreável. Seguindo nesta "pista", vou tentar fazer um exercício intelectual dispendioso, como condição necessária para sairmos de "nós mesmos" e para nos des-individualizar, pelo menos por instantes. Procuraremos neste post falar sobre um estilo musical que usualmente reprovaríamos o gosto tal qual jiló: o funk carioca.

Baseados numa cultura bacharelesca e erudita, fundada sob a crença firme no mito social difundido pelo europeu, de que o indivíduo educado nas instituições formais do Estado será um vencedor, um homem importante, um cidadão de “bem” e um exemplo de ser humano, fica difícil não se contaminar por esses pressupostos naturalizados e excluir tudo o que não está nesse quadro geral. Tanto ateus, quanto cristãos estão imbuídos deste mesmo espírito que parece algo particularmente relacionado ao romantismo. Não ao romantismo no sentido de senso comum, sinônimo de flores para a namorada, suspiros e cavalheirismos, mas em sua acepção filosófica vinculada à noção esperançosa de otimismo, atravessada pela ideia de progresso. Por isso, as dispersões e as descontinuidades nos pressionam a declará-las como coisas atrasadas culturalmente. Não seria o funk carioca um desses objetos deslocados de nossa “era de ouro”?

Os intelectuais menos reacionários dizem que o funk é a expressão da "cultura popular" de determinados lugares. Essa colocação ao mesmo tempo em que acalenta também alija. Por que se você diz “cultura popular” (do povo), logo contrapõe uma “cultura erudita” (da elite) e, assim, opera a separação de dois mundos que só existem em nossas frágeis cabeças. Os mais conservadores, sejam intelectuais profissionais ou homens do povo, asseveram que o funk é o produto da pura degradação humana, uma apologia vil à prostituição e à criminalidade, um atentado direto contra à moral e aos bons costumes. Para os religiosos ortodoxos, é a música inventada na parceria de satanás com belzebu. Ora senão são os mesmos argumentos já usados no passado para atacar diversos tipos de comportamentos considerados inapropriados para a época. Lembremos que na Idade Média a Igreja proibia as pessoas até de rirem. Proibiam-nas de estudar e apresentar resoluções diferentes daquelas consolidadas pela instituição. A Ópera foi considerada, em seu surgimento, a mais baixa cultura. Outros estilos musicais como o Rock e o Jazz também sofreram fortes preconceitos, mas atualmente eles estão culturalmente "naturalizados" e socialmente aceitos. Não são mais barulhos, são músicas.

Assim é a arte. Cientificamente inexplicável! Aliás, a arte, já estava entre os quatro pilares do conhecimento (gnose) da civilização antiga grega: religião, filosofia, ciência e arte. Mas alguém pode dizer: “funk carioca é arte?” Quem somos nós para julgar se é ou não? O Estado, através de suas instituições burocratizadas do saber, não nos concedeu tal autorização de julgamento. Porém, temos certeza que se o funk não é arte, quer ser. E às vezes uma coisa só é um "vir a ser".

Contudo, toda essa digressão feita até aqui, como um esforço de Hércules, é apenas para chegar a um ponto que nos tem chamado atenção ultimamente. Enfim, como fãs do rock, não somente enquanto estilo musical, mas também por todo um linguajar próprio, de expressão cultural ligado ao que atenta(ria) contra o status quo e contra o que é óbvio demais para ser verdade – pois devemos desconfiar das verdades mais óbvias –, temos percebido de que o “filho do diabo” tem perdido seu espaço para o funk, dentro dos espaços culturais da juventude. Vejam bem, acho que o funk carioca não tem como destronar o rock, em sua qualidade e estilo musical próprio (e considerado sofisticado por nós). Mas, como expressão cultural de contestação aos valores morais e políticos vigentes, o rock tem ficado para trás. Acreditamos que isso se dá porque o rock está imerso naquele conjunto de sentimentos ligados ao romantismo, esteja ele expressado como revolução ou como possibilidade de um mundo melhor. Já o funk não! O funk só quer gozar o aqui e o agora. Não promete nada para o futuro. O funk se relaciona muito bem com uma particularidade de nossos “tempos safados”, que é o hedonismo. Esse conceito cunhado pela filosofia grega e reutilizado na contemporaneidade para explicar o momento social do fruir, do aproveitar, do ter prazer. Sem dúvida essas questões estão muito mais relacionadas com os desejos sexuais imediatos do que com as preocupações políticas. Aliás, o momento de maior explosão do rock n´roll foi quando apareceu no âmbito comportamental de liberação das energias sexuais.

Atualmente, estaria a música intrinsecamente vinculada ao sexo? Certo dia, nesses programas de cultura “inútil” da TV brasileira, um cantor, não lembro bem quem, disse que a música é feita para arrumar um jeito para as pessoas transarem. Juro que fiquei minutos pensando nisso e nas músicas brasileiras que atualmente fazem sucesso: “fugidinha”, “ai se eu te pego”, “vai rolar tchê tchê rê rê”, “amar não é pecado” e etc. Bom, nesse sentido, acho que o funk “proibidão” cumpre bem sua função social.

O rock hoje em dia parece coisa de velho. Os maiores roqueiros da história – exceto os que morreram de overdose ou de Aids - atualmente são senhorzinhos, velhinhos ranzinzas da cabeça branca, que por sinal devem odiar o funk. O Mr. Catra[1], maior expoente do funk carioca, diz que quando jovem tinha uma banda de rock, mas mudou para o funk porque o funk era muito mais “heavy metal”. Será que, de certa maneira, ele não está certo? O funk carioca hoje choca muito mais do que o rock. Dado Vila Lobos, ex-integrante da Legião Urbana – talvez a banda de rock nacional que mais fez sucesso dentro do país – disse que não tolera ouvir as músicas que o filho escuta (funk). Para ele, isso é sinal de que está velho, pois seu pai também detestava as músicas que ele ouvia quando adolescente. Dinho Ouro Preto, disse em entrevista que não gosta do funk, não por causa da baixa qualidade musical, mas por conta da conotação que ele considera machista e desrespeitosa, que chama a mulher de cachorra, de cadela. Bom, aí já é outro problema. Se o cara (funkeiro) chama a mulher disso é porque de certa maneira ela - a mulher em sua representação - aceita a alcunha, ou seja, ela se subjetiviza. Mas daí querer que as pessoas não aceitem o suposto desrespeito por elas sofrido por acreditarmos que elas estão alienadas e, com tal justificativa, inventarmos regras ou leis para assegurar à liberdade da imoralidade social, não seria por excelência um atentado contra a própria liberdade de escolha em se subjetivar? Não seria melhor ensinarmos através da liberdade as possíveis consequências de aceitarem essa condição? Ou seja, em vez de inventar novas grades para assegurar suas liberdades, não seria mais coerente ensiná-las a se libertarem de qualquer grade que lhes impuserem? De qualquer modo, existem pessoas que não veem problema em serem chamadas de cachorras, outras já acham um absurdo. Como dissemos no início, caímos numa questão de gosto.


[1] Esse cidadão se declara judeu, domina os idiomas alemão, francês, inglês e hebraico, possui 20 filhos e diz que a fábrica não está fechada.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Liberdade de que somos escravos

O que é liberdade? Essa resposta parece tão óbvia. Mas é difícil de ser explicada. Liberdade é uma palavra que a gente vive usando, mas dificilmente para para pensar qual realmente é seu sentido. A liberdade pode ser um paradoxo na medida em que, se levada às raias do infinito, ela se aniquila. Vou tentar esboçar uma explicação aqui sobre pelo menos duas acepções do termo liberdade.

A primeira acepção é chamada de liberdade negativa. Acredito que esse entendimento seja o mais comum em nossos usos cotidianos. A liberdade negativa se explica pela ausência de coerção sobre nós. É quando não existe uma pressão externa física ou imaterial nos impedindo de realizar algo. Mas quando usamos a palavra “externa”, para descrever algo que age, obviamente, exterior a nós, começa o primeiro problema sério. O que de fato é "só" nosso? O que torna algo fora de mim ou dentro de mim? Imaginem o quanto "recebemos" de fora desde que nascemos, inclusive, para tornarmos quem nós somos. A própria noção de liberdade é construída como algo que chega de fora. Mas vamos deixar essas impertinências em suspensão para voltarmos a descrever a liberdade negativa.

A liberdade de ir e vir, por exemplo, é um tipo de liberdade negativa. Chamada negativa porque nega a participação-intervenção de outros. Esse tipo de liberdade é conhecido nas ciências humanas como liberdade liberal. Liberal, aqui, se refere a uma cultura política, uma “doutrina” filosófica e, por que não, a uma escolha política que se relaciona ao liberalismo. E não no sentido (senso comum) que pensamos significar, que geralmente designa uma pessoa como liberal se ela é permissiva - embora guarde uma relação intrínseca com essa caracterização sim. A liberdade liberal termina quando a do outro começa (lembram-se das tediosas aulas de história, filosofia e sociologia durante a escola?). 

A liberdade do liberalismo tem uma historicidade particular que aparece, sobretudo, a partir do momento de luta contra um Estado absolutista, centralizador, que censurava as liberdades religiosas. Daí a reforma de Lutero ser chamada de liberalismo religioso, pois representava uma reação contra os sacerdotes – padres, bispos, freis, papas - da Igreja Católica que funcionavam como intermediários entre os fiéis e Deus, submetendo os fiéis as autoridades deles caso quisessem “consultar” a Deus. As liberdades de expressão e imprensa (criticar o rei em público ou as verdades consagradas pela Igreja era assinar o “atestado de óbito”). As liberdades de ir e vir (as pessoas não podiam se mudar das cidades que nasciam. A não ser que fossem ligadas a nobreza e etc. As liberdades políticas (luta contra lideranças como Luís XIV de França, o rei que achava que era o sol). Há, além destes, outros exemplos. Nesse tipo de liberdade é suprimida a existência de intermediários; ela é, portanto, individual. A liberdade negativa se resume a liberdade de... Isto é, em relação a alguma coisa. Deve ser entendido como o seguinte: liberdade de pagar impostos. É a liberdade na qual estou "liberado" de tal tarefa/obrigação.

A segunda acepção é conhecida como liberdade positiva. Aparece conceitualizada pela primeira vez na obra Do Contrato Social do frânces Jean-Jacques Rousseau. Nesse tipo de liberdade, o indivíduo estaria livre para fazer algo. Isso dependeria de que ele já tivesse conquistado, em tese, a liberdade negativa - na qual não existem poderes externos atuando sobre ele. Agora, sem intervenção e dominação, ele estará livre para com outro estabelecer as regras que lhes convirem. Quanto mais houver acordos entre duas ou mais partes, que as satisfaçam igualmente, suas liberdades se tornarão cada vez maiores. Analisemos: a liberdade positiva agora nos possibilita que troquemos saberes, experiências, faculdades humanas, produtos sem que estes agridam a liberdade - negativa - de ninguém, conforme um acordo. A liberdade negativa levada ao extremo pode se tornar uma privação de quase tudo. Isolados, podemos fazer o que bem nos entender... pois não precisamos dos outros e quanto menos precisar deles mais livres seremos. Dominá-los e escravizá-los para que trabalhem para nós só mostraria o quanto somos dependentes deles e, portanto, não seríamos livres - no sentido de liberdade negativa. Neste caso, estaríamos livres de trabalhar, mas não estaríamos livres de precisar que alguém nos alimente. Neste sentido a liberdade positiva pode ser descrita como uma liberdade para... Uma liberdade que me concede uma possibilidade e que me dá alguma coisa. É uma liberdade social, não individual.

A liberdade dos filósofos

Por isso Marx critica Adam Smith em O Capital. Porque, afinal de contas, Smith em A Riqueza das Nações reivindica uma liberdade negativa; uma liberdade dos monopólios, das centralizações, das corporações, da escravidão que restringiam a livre circulação (ir e vir) dos trabalhadores e dos produtos. Ele dizia que agora os trabalhadores eram livres. Mas o sentido é de que são livres de e não livres para. Por isso Marx vai dizer: “sim, são livres como pássaros, e como pássaros não possuem nada, não tem proteção, não tem propriedades, só possuem a prole, por isso são proletários”. Sem dúvida a liberdade negativa é importante, mas só ela, solta e solteira serve apenas para tornarmo-nos escravos de nós mesmos. Pensem bem: a cada dia conhecemos algo que vem do exterior, aprendemos com o que vem de fora. Até na luta por nossa liberdade. Imaginem se não tivéssemos nenhum grau de “ligação social”, nenhum pouquinho de “prendimento”. Creio que, na condição de humanos, não sobreviveríamos. Por isso, a liberdade absoluta é algo impossível. Bakunin, contrariando a máxima liberal de que “a minha liberdade termina quando a do outro começa”, disse certa vez: “a liberdade do outro estende a minha ao infinito”! Claro, aqui ele levava muito a sério a liberdade nas duas acepções, no sentido de não precisar do outro, a não ser que a liberdade desse outro e a minha aumente com nossas necessidades coletivas, o que se tornaria liberdade positiva.

Por sua vez, Maurice Merleau-Ponty disse que “nunca há determinismo e nunca há escolha absoluta, nunca sou coisa e nunca sou consciência nua”. Todas as escolhas da vida têm alguma motivação, algum resquício do que é o social, do que não é liberdade no sentido de estar completamente solto. Mas também suas escolhas não são determinadas totalmente pelo o que ele apreendeu no social. Nesse caso a liberdade é paradoxal. Ela só aparece quando pensamos em seu oposto que é a escravidão e a prisão, mas só através das últimas é possível pensar a liberdade, porque é preciso algum grau de escravidão e de prisão para nos tornarmos livres.

O pessimista Emil Cioran disse que a única explicação para querer continuar vivo é justamente a possibilidade que ele tinha de se matar. Só é vivo pela liberdade que tem de tirar a própria vida, se não a tivesse já teria se matado. Sêneca disse que um homem só é inteiramente livre quando se mata. E Nietzsche reiterou que até para se matar ele é escravo do próprio corpo.

E você, ainda acha que é livre?

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Foucault nas grades do saber (sobre uma escola de prisão)

Há tempos que não escrevo aqui, mas é que depois de terminada minha experiência de professor na penitenciária, me cobrava algum post sobre tal. Então lá vai!

Por todo esse tempo que trabalhei lá sempre via as pessoas me indagarem com certa curiosidade escrutinada e às vezes maldosa sobre como era dar aulas dentro de uma cadeia. Muitas professoras que lá trabalham fazem pesquisas acadêmicas na área de pedagogia sobre o assunto. E pelo menos uma ou outra me perguntara se nunca tive vontade de fazer uma “análise histórica” sobre a escola na penitenciária. Quando dizia a alguém que trabalhava na cadeia sempre esperava as reações mais inusitadas. A única pessoa que tratou como algo corriqueiro foi um doutor professor da faculdade de educação da UFU durante a apresentação de um trabalho. Achei interessante, sobretudo a interrupção dele no alvoroço causado pelos demais apresentadores que ali estavam: algumas doutorandas, mestrandos e alunos da graduação. Depois fiquei um pouco neurótico tentando imaginar por que ele foi tão diferente. Talvez porque ele era um único a verdadeiramente achar normal, o que confesso não ser para mim. Mas não no sentido de espanto e até de indignação comum das pessoas: “Como? Lá dentro tem uma escola?” ou: “Por que você dá aulas para esses vagabundos? Eles não merecem!”  Pois é, essa última parece frase de um carcereiro, mas é de alguém da família. Mas no fim das contas a primeira frase se parece muito com a segunda. Todas as duas com seus devidos preconceitos e desconhecimentos. Bem iguais aos meus quando entrei lá.

Essa coisa de ter uma escola dentro da cadeia é ideia política de gênio. Ah! As professoras leitores de Paulo Freire e amantes de Gabriel Chalita dizem: “Que coisa maravilhosa! Agora eles vão ter a importância que nunca tiveram, terão oportunidades de andar no caminho certo e do bem”. Oh céus, dê luz a essas criaturas! Aliás, dê um pouco de trevas para enxergarem a penumbra que lhes embaça as vistas! Não é preciso colocar aqui as pseudo-comprovações estatísticas para mostrar que as escolas têm reduzido drasticamente as rebeliões dentro dos sistemas penitenciários. Por quê? As práticas disciplinares das escolas tornam os alunos (presos) mais dóceis. Sem que seja preciso bater, gritar ou algemar. É muito mais eficiente, o poder os penetra e a resistência é mínima agora, pois eles “escolhem” obedecer às normas, às regras, aos ritos escolares para estudarem. Tudo apenas com o uso de uma arma: o saber. Ou seria o mecanismo de poder-saber como Foucault andou dizendo por aí. Esse saber que é tido como uma dádiva divina do grande arquiteto que tudo faz, presente dos iluministas – alguns escravocratas - para nós, fonte de conhecimento, também é frequentemente utilizado nas relações de poder como uma prática das mais inocentes e bem-intencionadas, e por isso perigosas.

Outro dia discutia com um amigo, o Rodolffo, que também dá aula lá, sobre a eficácia desse método. Aliás, chegamos até a cogitar a possibilidade de Foucault estar corretíssimo quando comparou as escolas, os presídios, os hospitais e os hospícios, no sentido de que essas instituições sociais servem para “normalizar”, homogeneizar, docilizar os corpos e os indivíduos, os tornarem aptos para o trabalho e para conviverem em sociedade sem perturbação da ordem pública. É interessante e bastante incômodo ouvir isso, pois coloca lado a lado os profissionais integrantes (que não gostam de ser comparados uns aos outros) destas instituições sociais e seus respectivos saberes: os professores, os policiais/os carcereiros, os médicos e os psiquiatras – a burrice/a ignorância, a corrupção/a desordem, a doença e a loucura: são seus domínios e suas autoridades. Ou seriam suas pragas? É evidente que as coisas “boas” que esses conhecimentos científicos nos trouxeram vieram atreladas a outros “males”. Ou ainda além: que esses males são a condição sem a qual não seria possível utilizar o saber para fazer do outro um objeto: de pesquisa, de ressocialização, de recuperação, de civilização. O que dissemos pareceu de maneira bem semelhante àquela descrita por Foucault, quando se deu o nascimento da prisão coincidindo exatamente com o crepúsculo do "Século das Luzes" e da época de surgimento e de apelação para os direitos humanos. Ou seja, enquanto todos pensavam naturalmente em libertação e desenvolvimento, o filósofo mostrou a ascensão das tecnologias de poder agora sofisticadamente colocadas. 

Talvez seja por isso que ainda não quis pesquisar “cientificamente” nada sobre qualquer aspecto da cadeia ou sobre a escola dentro da cadeia. Porque me parece que nós doutores dos saberes vestimos nossos jalecos brancos, calçamos nossas luvas higienizadas descartáveis e empunhamos nosso microscópio (que no caso do cientista humano é o método) para entrar no laboratório pronto para dissecarmos as cobaias e depois de realizados nos desfazermos delas junto com nossas luvas sujas. Um dia ao sair de sala, vi dezenas de estudantes de direito observando as celas com seus professores universitários e resguardados pelos diretores da segurança, olhavam como se estivessem bem ali em um zoológico, e não é de se estranhar que de fato estavam mesmo. Foi possível ouvir alguém da segurança dizer: “Falam que cadeia só tem preto e pobre, mas aqui é diferente”. Sim, aqui temos macacos também, eu reiteraria! [Inclusive guardando as celas].

Não que eu não tenha a minha curiosidade zoológica sobre eles também. Viram como a palavra “eles” soou como se fossem alienígenas? Pois então, se os tratamos assim porque eles devem nos ver como iguais? Seriam eles melhores que nós? Acho que não. São iguaizinhos! E eu acho que é isso que nos causa mais horror e indignação diante de um crime. Não é o quanto aquilo está longe de nós, mas o quanto aquilo poderia ser feito por nós. Nietzsche uma vez disse que é necessário ter cuidado ao expulsarmos todos os demônios de nós para não expulsar nós mesmos.

O que gostaria de compreender melhor ali dentro, é o modo como as pessoas que escolheram ou foram escolhidas pelo mundo do crime constroem suas identidades a partir dos objetos culturais que fabricamos para eles. Os adjetivos que lhes atribuímos são muitas vezes assumidos e ressignificados. É desta maneira que constituem suas subjetividades. O rótulo de bandido deixa de representar vergonha para se tornar status e autoafirmação em determinados locais. Como é possível mesmo acreditando que roubar é errado e que o caminho dos pecadores é o inferno ainda conseguem encontrar uma base legítima para se chamarem de ladrões e mesmo assim acharem que estão do lado do bem?  E como constroem as máscaras que utilizam para atuarem em espaços sociais diferentes? De que maneira fazem a operação personal para serem bons pais, bons maridos, bons alunos [bom no sentido do que faz bem feito], discutirem futebol, assistir novelas, cantar “ai se eu te pego” e mesmo assim forjarem sua postura “profissional” irredutível quando devem lidar com um inimigo ou devedor? Seriam também bons ladrões - entendendo sob o mesmo sentido utilizado?

De que maneira suas subjetividades religiosas são constituídas? E o quão religiosos são! Às vezes mais do que nossas tias do interior. São cristãos. Assim como o apóstolo matador de cristãos (Paulo) se tornou. “Amai o próximo como a ti mesmo!” Somos os próximos dessas pessoas? Por mais que sejamos, nós mesmos não queremos ser. E eles entendem isso.

Li antes de escrever:
CARVALHO, A. F. de. História e subjetividade no pensamento de Michel Foucault. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. USP, São Paulo, 2007.
FOUCAULT, M. Estratégia, poder-saber: coleção ditos e escrito IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel. Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.
NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Curitiba: Editora Hemus, 2002.
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