quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Sob a insegurança e o humor: notas sobre "Busca Implacável" e "Assalto ao Banco Central"

Gostaria de tecer alguns comentários a respeito de dois filmes que me parecem bastante comuns à contemporaneidade: Busca Implacável (2005) e Assalto ao Banco Central (2010).  Mas, antes de começar, queria deixar claro que não sou especialista em análise fílmica, e por ser leigo desconsiderarei alguns detalhes técnicos, como a fotografia, a atuação, a direção e etc.

Podemos dizer que o gênero dos dois filmes é ação, mas é propriamente isso que os interliga, até porque existe um abismo de distância entre eles. Não só pelo primeiro ser uma produção estadunidense e a segunda brasileira, mas também, pelo tipo de enredo que é desenvolvido em torno da trama: um sequestro e um assalto. Ok! Os dois narram histórias sobre o crime, e é isso que os comungam entre si e com a contemporaneidade dos tempos safados, certo? Errado! Mesmo que eles abordem criminalidade, os aspectos explorados para atrair o espectador são bem diferentes: a insegurança e o humor. Contudo, ambos estão juntos no rol do que é muito próprio a nossa época.

Em Busca Implacável, o protagonista um ex-agente da CIA e pai totalmente paranoico teme em deixar a filha de 17 anos fazer uma viagem para a França com a prima mais velha, explicando que o mundo é cheio de pessoas “desumanas e sanguinárias”. Relutante ele autoriza a viagem. Mas sua teia de paranoia e insegurança (e a do público) é satisfeita quando ambas garotas são sequestradas por albaneses que pretendem drogá-las e vendê-las ao mercado da prostituição. Obviamente que, no final do filme, Liam Neeson (o ator que interpreta o pai), como todos os astros do Domingo Maior, consegue matar todos os bandidos “mauzinhos” armados com metralhadoras de Israel, usando apenas um celular e um grampo de cabelo na mão. Mas isso não importa!

Quero chamar atenção para dois elementos principais no filme, o primeiro é a xenofobia (étnica e ideológica). É interessante perceber que os personagens que fazem os papéis de algozes principais não são franceses, mas imigrantes, e de um lugar específico do qual os EUA não costuma fazer propaganda positiva, a chamada Europa Oriental. Região em parte unida à União Soviética dos comunistas satânicos. No filme existe um diálogo, onde o francês diz mais ou menos assim: “essa gente (os albaneses) veio para cá depois de uma crise em que seu povo passava fome, aqui se instalaram, se incrustaram, com sua rede de negócios sujos, tráfico e agenciamento de prostituição.” Claro, foram esses ex-comunistas leprosos que contaminaram toda a Europa, inclusive a democrática França de Sarcozy[1], com sua doença e sede por dinheiro à todo custo. Aqui, depois de tantos anos de luta anticomunista (o macartismo e outras), ainda vemos resquícios do passado e o peso da História (escrita de acordo com os interesses do autor) sobre o presente.

Em um segundo elemento, vemos a insegurança. Bom, será que ela se deve pelo passado do ex-agente da CIA, órgão que praticou/pratica milhares de crimes no mundo inteiro[2]? Acho que não, o roteirista não teria essa sofisticação de crítica ao glorioso empreendimento americano. Prefiro acreditar que a insegurança é um aspecto muito comum a nossa época e difundido (sentido) entre todos os cidadãos comuns; obviamente maior ainda pós 11 de Setembro para os americanos. O fato é que isso me parece um efeito cíclico, que liga a Indústria Cinematográfica às mídias de comunicação de massa. Esse medo, essa insegurança ao comportamento dos demais tem sido muito bem exploradas por esses ramos de negócios, que tem lucrado milhões vendendo tragédias ligadas à violência urbana, seja nos filmes, seja nos noticiários e programas de tevê policiais. Michael Moore, em seu documentário Tiros em Columbine (2003), diz que a Indústria de Armas nos EUA arrecada bilhões por ano, disseminando, através da propaganda, o medo e a insegurança nos cidadãos comuns.

Está mais do que claro, o que essas imagens provocam na população. Mesmo com a redução da criminalidade, a impressão que se tem, através dos noticiários e programas policiais, é de que a violência só tem aumentado e tornado cada vez mais brutal. Isso faz com que os cidadãos virem reféns de seus próprios medos. O medo de assaltos e sequestros esvazia os espaços públicos das cidades, a convivência com os outros se torna apenas virtual, as pessoas se trancafiam em suas casas com dispositivos de alarmes, proteções como cacos de vidros ou seringas contaminadas de HiV[3] são colocadas nos muros, se estão andando na rua se assustam com alguém que corre, se consideram alguém suspeito à alguns metros trocam de calçada. O assaltante nem precisa estar armado para agir, aliás, nem precisa ser assaltante para assaltar, perguntar as horas em voz alta já faz com que a pessoa lhe entregue o celular e a carteira, de tanto medo. Um aluno meu (preso por roubo), disse que já assaltou diversas pessoas na rua com uma torneira. “Pois é, quando eu não tinha arma porque tinha vendido para comprar droga, e precisava de mais dinheiro para comprar mais crack, eu colocava uma torneira cromada embaixo da camisa e mostrava para a vítima o reflexo, ela nem se preocupava em saber o que realmente era, e me passava tudo”, explicou ele.

Agora vamos falar sobre a produção cinematográfica brasileira. O filme Assalto ao Banco Central como se sabe retrata um acontecimento real recente na história do Brasil, qualificado como o maior roubo a banco já noticiado do país. Claro, porque se formos considerar os desvios aos cofres públicos (vulgar banco do povo), esse “assaltinho” de 164 milhões de reais ficaria no chinelo.

O que mais me chamou atenção no filme foi o tom de humor do roteiro. Em se tratando de um roubo, um crime à própria população (por conta do banco ser estatal), com cenas de violência, inclusive assassinatos e de um filme de ação (embora já soubéssemos minimamente o final) não era para (dentro da lógica) causar risos descomedidos na plateia, como os que eu vi e participei.

Parece-me que este aspecto é muito próprio a nossa época. Assuntos sérios geralmente estão sendo levados sob uma dinâmica de humor. Os programas de televisão, como exemplo (CQC e A liga), que prestam-se a fazer críticas e denúncias de descaso da administração pública, que geram sérios problemas aos cidadãos, como desmoronamento de encostas, interdição de vias públicas, sucateamento de escolas e hospitais e favorecimentos de pessoas e empresas ligadas aos governantes; como também apontar o caos na vida urbana, a violência, a prostituição, o estresse no trânsito, os subempregos, as drogas, os preconceitos raciais e etc; tem sido conduzidos por comediantes ou por pessoas que se esforçam para serem engraçadas, assim como faz o comentarista de política da Globo, Arnaldo Jabor.

Como diria uma certa música, “não vemos graças nas gracinhas da tevê, morremos de rir no horário eleitoral”. O humor pelo humor tem nos deixado irritado, em vez de alegres. Hoje o humor está mais para o político e para o crítico, do que para o pastelão. Tanto é, que o seriado de maior sucesso na tevê aberta brasileira tem sido um que critica severamente o racismo e a discriminação racial na sociedade americana, sobretudo, da virada dos anos 80, conhecidíssimo e muito reprisado Todo Mundo Odeio o Chris. A verdade é que a Sociedade do Espetáculo[4], onde tudo que é do cotidiano, do tempo “real”, do reality show, está passando por uma nova fase, que o autor Gilles Lipovetsky (na imagem ao lado) chama de Sociedade Humorística[5]. Aqui, no fenômeno da dramatização direcionado e retroalimentado pela mídia de massa: clima de crise, insegurança urbana (que lembra Busca Implacável), catástrofes naturais (terremotos, tsunamis) e não-naturais (soterramento dos mineiros chilenos), onde as informações caminham para o “pseudo-acontecimento”, para o sensacionalismo, para o suspense; quase não temos percebido brotar dessa subjetividade um outro código, o humorístico. Estampados nas manchetes de jornais, revistas semanais, artigos científicos ou filosóficos, e sobretudo, nas conversas e comentários cotidianos, mesmo se for para falar da morte de alguém ou de qualquer outra desgraça “alheia”.



[1] Que expulsou os ciganos e pretende expulsar os muçulmanos e, se pudesse, expulsaria também os argelinos, os marroquinos e demais imigrantes considerados “inferiores”. Ver: http://www.jornalagora.com.br/site/content/noticias/detalhe.php?e=4&n=800
[2] A CIA comete cerca de 100 mil crimes por ano. Revista Mundo Estranho. São Paulo: Editora Abril. Abril/2008, p.29.
[3] Uma médica levou do hospital esses materiais os colocando em cima dos portões que cercavam sua casa para assegurar-se com os ladrões. Ver: http://diariodoestado.com/?p=1875
[4] DEBORD, Guy. A sociedade de espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
[5] LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri, SP: Manole, 2005.
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