quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Hollywood manchada de vermelho: A cidade do silêncio

Há muito não assistia a um filme que me deixasse impactado, não no sentido de despertar pensamento dúbio sobre a mensagem transmitida pelo roteiro (desses vi alguns recentemente: Dogville, A Origem, A Trilha, Código de Conduta, etc.), mas no sentido de causar certo espírito de revolta com uma narrativa limpa e objetiva. A obra ou o produto hollywoodiano que me refiro se chama “A cidade do silêncio” (Bordertown, EUA, 2006). A surpresa foi maior porque não dava nada pela história, tampouco pelo elenco (Antônio Bandeiras e Jennifer Lopez são os protagonistas). Mas o diretor e roteirista californiano (descendente de mexicanos e bascos) Gregory Nava conseguiu fazer um ótimo trabalho. Muito por conta de o roteiro ser a ambientação de uma história real vivenciada (até hoje) na cidade de Juarez no México.
O filme denuncia o “feminicídio” ocorrido na mesma proporção que a produção de televisões e monitores fabricados nas indústrias americanas instaladas em Juarez, cidade fronteiriça ao Texas. Essa escala de medida não é inteiramente ilustrativa, tendo em vista que o roteirista consegue estabelecer uma relação (in)direta entre o subdesenvolvimento do México, acentuado pelo acordo de livre-mercado com os EUA através do NAFTA, e o índice de assassinatos de mulheres da cidade mais violenta da América Latina, segundo o CCSP e outras fontes[1]. Chega ser engraçado lermos na BBC que a cidade vizinha à Juarez, El Paso no Texas, é uma das cidades estadunidenses mais seguras e pacíficas. Óbvio que a forte segurança contra a imigração ilegal e o narcotráfico contribua muito para isso; contudo, a população de El Paso  composta por 80% de latinos, mostra que, não são questões puramente étnicas as causas da criminalidade, mas principalmente fatores políticos e econômicos[2].
As empresas estadunidenses assentadas na cidade mexicana dão preferência à contratação de mulheres para trabalhar em suas linhas de montagens, pois, conforme o filme ressalta, estas reclamam menos das longas jornadas de trabalho e são menos remuneradas que os homens. Essa globalização é fruto de uma política neoliberal acordada entre governantes americanos e mexicanos, e contribui para uma desigualdade entre os países que participam do acordo, geralmente não perceptível à primeira vista por todos. O livre-mercado só é significativo, neste caso, para os EUA, tendo em vista que o México não possui esses milhares de empresas instaladas no território yankee, pelos motivos dos quais já estamos carecas de saber desde as aulas de geografia política do ensino médio.
Aliás, essa realidade macro-econômica muito me lembra uma passagem de “O Capital” de Marx, onde o trabalhador agora solto, solteiro, livre e apartado dos seus meios de produção (no caso do campesino, a terra tomada pelos cercamentos e impostos) agora é obrigado a trocar o único bem que possui: sua força de trabalho (ou sua vida, se lhes convierem); uma troca desigual, pois, já sabemos também que a força de trabalho gera mais valor do que ela mesma tem. Em disposição parecida se encontra o México no NAFTA, quer dizer, em teoria ele poderia fazer o mesmo que os Estados Unidos faz, mas na prática, assim como o campesino que perdeu a posse de seu meio de produção, o país se vê obrigado a se sujeitar alugando sua mão-de-obra, pois não possui indústrias e fábricas modernas na mesma quantidade que seu “parceiro” comercial.
Embora as autoridades políticas e policiais não queiram investigar o alto índice de homicídio de mulheres (ao contrário, querem esconder) e os proprietários das indústrias americanas façam vista grossa para as centenas de funcionárias e ex-funcionárias estupradas e violentadas sexualmente e depois executadas, a realidade está escancarada ao mundo inteiro através do barulho feito por outra indústria, a hollywoodiana. Existe um diálogo interessante no filme que retrata a indiferença e o cinismo capitalista: a jornalista americana (Jennifer Lopez) que vai até a cidade investigar as mortes pergunta ao um empresário se ele não se importa com as vítimas e propõe que ele denuncie os criminosos (inclusive empresários e senadores envolvidos), então ele pergunta: “denunciar para quem? Todos sabem e participam da matança, quem deveria se importar é quem mais está ganhando em ocultar os crimes, é mais barato escondê-los do que resolvê-los”.
No término do filme fiz uma pesquisa rápida para checar as informações transmitidas por ele, e infelizmente os acontecimentos não destoam da ficção. Depois que a mídia (aqui cumprindo uma função social de extrema importância) expôs ao mundo o que as autoridades silenciavam, houve (e ainda há) uma série de manifestações contra a violência, os homicídios e a exploração sofrida em Juarez. No começo de 2011, Suzana Chavez, uma ativista e poetiza mexicana, que participava das manifestações e criou a expressão “nem mais uma morta”, foi brutalmente estrangulada e assassinada na cidade de Juarez (da mesma maneira que outras mulheres) e teve sua mão esquerda decepada (como uma espécie de punição pelo que ela escrevia). Contudo, policiais mexicanos disseram que seu assassinato não teve relação com seu ativismo político, segundo o jornal britânico BBC.[3] No “Diário da Liberdade” uma reportagem diz que o governo mexicano tentou esconder este crime hediondo sob o pretexto de não despertar a ira social.[4] Atualmente, Suzana se tornou um símbolo da luta das mulheres de Juarez.
Imagem real em Juarez
Certos filósofos de extrema direita têm dito que Hollywood hoje é comunista, por conta dos filmes críticos ao capitalismo e ao imperialismo (Senhor das Armas, Diamante de Sangue, Clube da Luta e outros), mas não sejamos tão maniqueístas e rasos; é verdade que existe um tom anticapitalista em alguns filmes, mas não representam nenhuma conversão ideológica ao comunismo ou ao anarquismo. Longe de fazermos também análises psicologizantes como propõe o marxista lacaniano Slavoj Zizek[5], entendemos que estas expressões artísticas são apenas desilusões às conseqüências da política econômica de “livre-mercado”, da mesma maneira que Euclides da Cunha e os frankfurtianos se descontentaram com os mitos da modernidade, do progresso e da civilização como filhos do Iluminismo. O vermelho de Hollywood é não é do comunismo, mas do sangue derramado das mujeres de Juarez pelo capitalismo.

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[1] Conselho Cidadão de Segurança Pública, uma organização civil mexicana. Mas existem outras inúmeras fontes nacionais e internacionais que, ou consideram Juarez a cidade mais violenta ou perigosa do mundo, ou está na lista seleta destas estatísticas: http://www.rnw.nl/portugues/article/cidades-mais-violentas-do-mundo
[2] De acordo com a BBC, os dados do FBI apontam que El Paso é a segunda cidade mais segura dos EUA: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/07/100729_mexico_rc.shtml
[3] http://www.bbc.co.uk/news/world-latin-america-12177543
[4] http://www.diarioliberdade.org/index.php?option=com_content&view=article&id=10873:nem-mais-uma-morta-assassinada-activista-susana-chavez&catid=280:mulher-e-lgbt&Itemid=182
[5] Ver: ZIZEK, Slavoj. O mito familiar da ideologia. In:______. Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo, 2011, p.71-112.

sábado, 29 de outubro de 2011

Professor não é super-herói...

...nem deve ser. Existe uma célebre frase do poeta russo Maiakovski que diz o seguinte: “Triste a sociedade que precisa de heróis”. Compartilho da opinião do poeta por dois motivos. Primeiro porque o herói é um mito, uma fábula inventada. Não se encontram heróis nas sociedades, os que assim são chamados são pessoas de carne e osso, com “qualidades e defeitos” iguais aos outros. Os heróis são construções textuais, orais e simbólicas que visam preencher espaços vazios na incompletude do real - que se pretende forjar perfeito em alguma medida. Heróis são ilusões discursivamente fabricadas. Segundo, porque quando considera-se alguém "herói", atribui-se a essa pessoa uma responsabilidade incômoda e uma posterior cobrança das atitudes da mesma, como se ela pudesse pairar sobre a superfície como um ser não-social, diferente de todos aqueles que cotidianamente convivem e estabelecem relações e trocas culturais.
Cansamos de ouvir frases do tipo: “o professor precisa... o professor deve...” Deste modo, parece que o professor precisa ser impecável, pois possui uma responsabilidade imensa. Mas será que possui mesmo? Parece-me que a sociedade espera que o professor ensine-a a ser o que ela não é e o que ela não quer ser. Ou então ensine aos jovens as coisas que todo mundo já se deu conta de que está "errado", mas continua fazendo. Fico em dúvida se isso é sintoma da hipocrisia ou da esquizofrenia da sociedade capitalista.
Mesmo se a escola e a educação formal se propusessem ao desenvolvimento de um projeto sério que transformasse todos os valores atuais (de competição, de lucro, de benefício próprio, de convivência passiva às desigualdades sociais, étnicas e econômicas), seria somente um pequeno barquinho remando à mão contra a correnteza forte de um rio que o levará para uma gigante cachoeira vertical.
A escola é somente uma célula da sociedade onde se desenvolvem relações culturais, nem mais nem menos significativas do que outras esferas sociais e culturais - como a família, o trabalho, os meios de comunicação e o consumo. Aliás, estes dois últimos citados atualmente são muito mais sedutores, com seus cigarros, cervejas e programas de auditório. E, como diria o cantor: “a programação existe pra manter você na frente... na frente da TV, que é pra te entreter, que é pra você não ver que o programado é você” [1]. Deste modo, é complicado (e até arrogante) o professor se colocar na contracorrente desta avalanche que levanta uma densa poeira que a todos cega. Enquanto isso, o professor que tapa os olhos até que a poeira assente, das três assertiva a seguir uma é certeira: se recusa a fazer este serviço; é chamado de louco (como no mito da caverna); ou é demitido. [2]
Temos que aceitar o fato de que a educação não vai resolver os problemas da sociedade. Até porque os problemas educacionais são apenas reflexos dos problemas políticos. Ou altera-se completamente a ordem política ou continuaremos ouvindo discursos pedagógicos vazios sobre as “maravilhas da educação com amor”. Não foi com amor que combateram o nazismo. Foi com ação! Mas será que as pessoas, não somente os professores heróis, estão dispostas a isso?
A cada dia que passa vemos empresas construindo verdadeiros impérios econômicos à custa da exploração dos recursos naturais do planeta e dos seres humanos. A única possibilidade de não ser explorado é tornando-se explorador. Para que esta competição acabe é preciso que algumas coisas mudem.
Toda essa complexa rede social está atualmente assegurada por políticos sanguessugas que ano após ano aprovam seus frondosos aumentos de salário. Da mesma maneira, a cada dois anos, vamos feito robôs lá para legitimar que isto continue, votando e alienando nossos desejos, reivindicações e ideais a outros que sequer conhecemos. Afinal, a “cidadania” não espera, não é mesmo?
Neste contexto, o que é a Escola? Nada mais do que uma instituição estatal burocratizada projetada para reproduzir toda essa série de desigualdades e injustiças. E os professores? São somente humanos, demasiado humanos.
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[1] “Até Quando?” Música de Gabriel, o pensador.
[2] Paulo Freire diz que o profissional da educação que realmente acredita na transformação social e defende seus princípios tem de estar disposto a perder seu emprego.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Sob a insegurança e o humor: notas sobre "Busca Implacável" e "Assalto ao Banco Central"

Gostaria de tecer alguns comentários a respeito de dois filmes que me parecem bastante comuns à contemporaneidade: Busca Implacável (2005) e Assalto ao Banco Central (2010).  Mas, antes de começar, queria deixar claro que não sou especialista em análise fílmica, e por ser leigo desconsiderarei alguns detalhes técnicos, como a fotografia, a atuação, a direção e etc.

Podemos dizer que o gênero dos dois filmes é ação, mas é propriamente isso que os interliga, até porque existe um abismo de distância entre eles. Não só pelo primeiro ser uma produção estadunidense e a segunda brasileira, mas também, pelo tipo de enredo que é desenvolvido em torno da trama: um sequestro e um assalto. Ok! Os dois narram histórias sobre o crime, e é isso que os comungam entre si e com a contemporaneidade dos tempos safados, certo? Errado! Mesmo que eles abordem criminalidade, os aspectos explorados para atrair o espectador são bem diferentes: a insegurança e o humor. Contudo, ambos estão juntos no rol do que é muito próprio a nossa época.

Em Busca Implacável, o protagonista um ex-agente da CIA e pai totalmente paranoico teme em deixar a filha de 17 anos fazer uma viagem para a França com a prima mais velha, explicando que o mundo é cheio de pessoas “desumanas e sanguinárias”. Relutante ele autoriza a viagem. Mas sua teia de paranoia e insegurança (e a do público) é satisfeita quando ambas garotas são sequestradas por albaneses que pretendem drogá-las e vendê-las ao mercado da prostituição. Obviamente que, no final do filme, Liam Neeson (o ator que interpreta o pai), como todos os astros do Domingo Maior, consegue matar todos os bandidos “mauzinhos” armados com metralhadoras de Israel, usando apenas um celular e um grampo de cabelo na mão. Mas isso não importa!

Quero chamar atenção para dois elementos principais no filme, o primeiro é a xenofobia (étnica e ideológica). É interessante perceber que os personagens que fazem os papéis de algozes principais não são franceses, mas imigrantes, e de um lugar específico do qual os EUA não costuma fazer propaganda positiva, a chamada Europa Oriental. Região em parte unida à União Soviética dos comunistas satânicos. No filme existe um diálogo, onde o francês diz mais ou menos assim: “essa gente (os albaneses) veio para cá depois de uma crise em que seu povo passava fome, aqui se instalaram, se incrustaram, com sua rede de negócios sujos, tráfico e agenciamento de prostituição.” Claro, foram esses ex-comunistas leprosos que contaminaram toda a Europa, inclusive a democrática França de Sarcozy[1], com sua doença e sede por dinheiro à todo custo. Aqui, depois de tantos anos de luta anticomunista (o macartismo e outras), ainda vemos resquícios do passado e o peso da História (escrita de acordo com os interesses do autor) sobre o presente.

Em um segundo elemento, vemos a insegurança. Bom, será que ela se deve pelo passado do ex-agente da CIA, órgão que praticou/pratica milhares de crimes no mundo inteiro[2]? Acho que não, o roteirista não teria essa sofisticação de crítica ao glorioso empreendimento americano. Prefiro acreditar que a insegurança é um aspecto muito comum a nossa época e difundido (sentido) entre todos os cidadãos comuns; obviamente maior ainda pós 11 de Setembro para os americanos. O fato é que isso me parece um efeito cíclico, que liga a Indústria Cinematográfica às mídias de comunicação de massa. Esse medo, essa insegurança ao comportamento dos demais tem sido muito bem exploradas por esses ramos de negócios, que tem lucrado milhões vendendo tragédias ligadas à violência urbana, seja nos filmes, seja nos noticiários e programas de tevê policiais. Michael Moore, em seu documentário Tiros em Columbine (2003), diz que a Indústria de Armas nos EUA arrecada bilhões por ano, disseminando, através da propaganda, o medo e a insegurança nos cidadãos comuns.

Está mais do que claro, o que essas imagens provocam na população. Mesmo com a redução da criminalidade, a impressão que se tem, através dos noticiários e programas policiais, é de que a violência só tem aumentado e tornado cada vez mais brutal. Isso faz com que os cidadãos virem reféns de seus próprios medos. O medo de assaltos e sequestros esvazia os espaços públicos das cidades, a convivência com os outros se torna apenas virtual, as pessoas se trancafiam em suas casas com dispositivos de alarmes, proteções como cacos de vidros ou seringas contaminadas de HiV[3] são colocadas nos muros, se estão andando na rua se assustam com alguém que corre, se consideram alguém suspeito à alguns metros trocam de calçada. O assaltante nem precisa estar armado para agir, aliás, nem precisa ser assaltante para assaltar, perguntar as horas em voz alta já faz com que a pessoa lhe entregue o celular e a carteira, de tanto medo. Um aluno meu (preso por roubo), disse que já assaltou diversas pessoas na rua com uma torneira. “Pois é, quando eu não tinha arma porque tinha vendido para comprar droga, e precisava de mais dinheiro para comprar mais crack, eu colocava uma torneira cromada embaixo da camisa e mostrava para a vítima o reflexo, ela nem se preocupava em saber o que realmente era, e me passava tudo”, explicou ele.

Agora vamos falar sobre a produção cinematográfica brasileira. O filme Assalto ao Banco Central como se sabe retrata um acontecimento real recente na história do Brasil, qualificado como o maior roubo a banco já noticiado do país. Claro, porque se formos considerar os desvios aos cofres públicos (vulgar banco do povo), esse “assaltinho” de 164 milhões de reais ficaria no chinelo.

O que mais me chamou atenção no filme foi o tom de humor do roteiro. Em se tratando de um roubo, um crime à própria população (por conta do banco ser estatal), com cenas de violência, inclusive assassinatos e de um filme de ação (embora já soubéssemos minimamente o final) não era para (dentro da lógica) causar risos descomedidos na plateia, como os que eu vi e participei.

Parece-me que este aspecto é muito próprio a nossa época. Assuntos sérios geralmente estão sendo levados sob uma dinâmica de humor. Os programas de televisão, como exemplo (CQC e A liga), que prestam-se a fazer críticas e denúncias de descaso da administração pública, que geram sérios problemas aos cidadãos, como desmoronamento de encostas, interdição de vias públicas, sucateamento de escolas e hospitais e favorecimentos de pessoas e empresas ligadas aos governantes; como também apontar o caos na vida urbana, a violência, a prostituição, o estresse no trânsito, os subempregos, as drogas, os preconceitos raciais e etc; tem sido conduzidos por comediantes ou por pessoas que se esforçam para serem engraçadas, assim como faz o comentarista de política da Globo, Arnaldo Jabor.

Como diria uma certa música, “não vemos graças nas gracinhas da tevê, morremos de rir no horário eleitoral”. O humor pelo humor tem nos deixado irritado, em vez de alegres. Hoje o humor está mais para o político e para o crítico, do que para o pastelão. Tanto é, que o seriado de maior sucesso na tevê aberta brasileira tem sido um que critica severamente o racismo e a discriminação racial na sociedade americana, sobretudo, da virada dos anos 80, conhecidíssimo e muito reprisado Todo Mundo Odeio o Chris. A verdade é que a Sociedade do Espetáculo[4], onde tudo que é do cotidiano, do tempo “real”, do reality show, está passando por uma nova fase, que o autor Gilles Lipovetsky (na imagem ao lado) chama de Sociedade Humorística[5]. Aqui, no fenômeno da dramatização direcionado e retroalimentado pela mídia de massa: clima de crise, insegurança urbana (que lembra Busca Implacável), catástrofes naturais (terremotos, tsunamis) e não-naturais (soterramento dos mineiros chilenos), onde as informações caminham para o “pseudo-acontecimento”, para o sensacionalismo, para o suspense; quase não temos percebido brotar dessa subjetividade um outro código, o humorístico. Estampados nas manchetes de jornais, revistas semanais, artigos científicos ou filosóficos, e sobretudo, nas conversas e comentários cotidianos, mesmo se for para falar da morte de alguém ou de qualquer outra desgraça “alheia”.



[1] Que expulsou os ciganos e pretende expulsar os muçulmanos e, se pudesse, expulsaria também os argelinos, os marroquinos e demais imigrantes considerados “inferiores”. Ver: http://www.jornalagora.com.br/site/content/noticias/detalhe.php?e=4&n=800
[2] A CIA comete cerca de 100 mil crimes por ano. Revista Mundo Estranho. São Paulo: Editora Abril. Abril/2008, p.29.
[3] Uma médica levou do hospital esses materiais os colocando em cima dos portões que cercavam sua casa para assegurar-se com os ladrões. Ver: http://diariodoestado.com/?p=1875
[4] DEBORD, Guy. A sociedade de espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
[5] LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri, SP: Manole, 2005.

sábado, 9 de julho de 2011

A natureza do homem é (des)fazer-se.

Tenho duas amigas de nomes bastante peculiares, Fayga e Sálua, com as quais dialogo cotidianamente sobre política, história e outros assuntos. A primeira é “recém-chegada” de uma experiência de intercâmbio em Portugal e, se mostra pouco paciente com o comportamento social dos brasileiros em relação ao desrespeito com o próximo. A última está beirando um niilismo essencialista, se mostrando descrente com o ser humano em geral e chegando a postular que o homem constrói a sociedade partindo do ponto de seu “egoísmo de nascença”. Todas as duas colegas instigam meus pensamentos; ou com suas posições definidas, ou com suas dúvidas inquietantes e provocativas que me lançam. Certamente que esta discussão em torno da natureza humana atravessa milênios, mas gostaria de em poucas linhas expor alguns comentários.

Para começo de conversa, se pudermos adiantar os postulados de Aristóteles, “o homem é um ser social”. Mas que significa dizer isso? Significa que o homem é um único animal que modifica seu meio ambiente e as relações com os de sua mesma espécie. É ele que constrói, em conjunto, seu próprio ambiente e o modo como se relaciona com os Outros, sobretudo, através da cultura. É esta que nos diferencia dos demais animais, e que nos tornam humanos; sem apreender e aprender seríamos somente “animaizinhos” com nossa constituição biológica. Prova disso são os chamados meninos-lobos: crianças encontradas depois de longos anos vivendo em isolamento da sociedade, as vezes, convivendo com animais selvagens e, que por isso, demonstraram comportamentos bem semelhantes a eles. Defecavam em público, não sentiam frio, não sabiam falar, utilizar o banheiro, tampouco assistir o “Vai Dar Namoro”.

Gostaria de salientar que não é somente com a instrução oral sobre o que é certo e o que é errado que aprendemos a nos comportar, aliás, isto representa um ínfimo de nossa educação humana, e talvez possa ser até anulada se as práticas sociais que observamos e com a qual nos inserimos no meio são contrastantes. Nossa condição (e não natureza) humana se edifica sobretudo através das experiências sensíveis que envolvem o pensar, o agir e o sentir. Não é possível que o homem se torne mal, desrespeitoso, egoísta, se essas possibilidades não estiverem dispostas, oferecidas e aprendidas no meio social. Também é quase impossível (a não ser que seja divino e não-humano) que seja altruísta, misericordioso, benevolente vivendo em um meio social onde quem pratica esses valores são desfavorecidos ou considerados otários. Depois de um pouco de teoria, vamos para um estudo de caso.

Uma de minhas amigas diz andar contrariada com as atitudes dos brasileiros. O desrespeito, o machismo e o assédio rude com as mulheres; a intolerância e impaciência com os “deficientes”, idosos e homossexuais; o “jeitinho brasileiro” de querer tirar proveito das coisas e das pessoas; a indiferença com o meio ambiente; a lei da selva no trânsito; a violência; são aspectos que fazem com que ela pense em se mudar, impreterivelmente, para Portugal. O senso comum pode dizer que ela está certa, afinal, o Brasil é um país de “terceiro mundo”, economicamente atrasado e com uma série de problemas sociais diretamente relacionados com a falta de dinheiro.

Mas vejam bem! Portugal passa por uma das maiores crises econômicas de sua história, pessoas desempregadas, cadernetas de poupanças reduzidas, idade para aposentadoria aumentando, políticas de contenção à imigração, recorrência a empréstimos pela União Europeia e etc. Então, como ainda conservam a educação, o respeito e a tolerância com próximo se são as condições do meio que “determinam” a estratégia de comportamento dos indivíduos? A experiência histórica do país contribui para entendermos isso.

Como todos estamos carecas de saber, nós brasileiros, fomos colonizados por Portugal. Pode-se dizer que o Imperialismo representou um degrau significativo para o Capitalismo[1]. Neste período, os bigodudos usaram e abusaram das colônias portuguesas. Foram séculos de coação e exploração. Comportamento nada “civilizado”, né? Mas, após terem mergulhados em piscinas cheias de moedas de ouro extraídas do Brasil através do trabalho escravo africano, os portugueses atingiram um nível econômico considerável, depois, procuraram distribuir a renda de modo mais igualitário[2] aos seus cidadãos para conter revoluções que solapariam o capitalismo[3].

Nesta etapa de luta por uma melhor qualidade de vida, o atropelamento desenfreado de uns pelos outros no capitalismo ascendente representava um entrave para atingir tal estágio. Quando as condições de renda possuem uma paridade maior, é possível que outros valores, que não o da disputa por espaço e por dinheiro, ganhem uma alavancada relevante. Aqui, os cidadãos já podem reconhecer que o respeito, a tolerância, a solidariedade são condições imprescindíveis para uma boa qualidade de vida. O outro deixa de ser concorrente e passa a ser colaborador numa espécie de ajuda mútua[4]. Deste modo, a cultura do respeito gestada nesses longos anos consegue sobressair à luta de todos contra todos, que já não faz mais sentido algum. Neste momento histórico contemporâneo em Portugal, mesmo diante da crise, a cultura do respeito ao próximo consolidada representa um entrave no pisar na goela do próximo para conquistar a todo custo um lugar ao sol numa sociedade capitalista de recessão econômica. Agora, caso a crise perdure por muito tempo não sabemos até quando essa cultura vai resistir.

E no Brasil? Me parece que essa cultura do respeito ainda não foi “ovulada”. Primeiro porque nossa experiência histórica é muito diferente de Portugal. Nós fomos a colônia! Somos um país muito maior, com uma diversidade étnica, regional e geográfica bastante significativa, conseguimos nossa independência a menos de 200 anos (será que conseguimos mesmo?), acabamos de sair de uma Ditadura Militar e temos muito ainda a aprender com as experiências recentes.

Mesmo que atingir uma determinada ascensão social atualmente aqui seja mais “fácil” que em Portugal, ainda estamos na fase de pisar na goela do outro para conseguir nosso espaço, não tem vagas de emprego para todos; essa é uma dinâmica constante no capitalismo em ascensão. É deste modo que vemos reinar acontecimentos cotidianos como: esvaziar o pneu do concorrente da mesma vaga de emprego que almejamos; acotovelar as pessoas para entrar no transporte coletivo e sentarmos sem amarrotar nossos uniformes; acelerarmos o carro para passar no sinal amarelo mesmo quando pessoas já se posicionam na faixa de pedestres; estacionar na vaga de deficientes e idosos para que nosso belo veículo comprado em 400 prestações não descasque no sol; ou seja, estabelecer nossos princípios morais e éticos logo após as consequências que nos gerarão lucro e vantagem sobre o outro. Como disse, a cultura do respeito ainda precisa ser gestada no Brasil, mas até que as condições dignas de renda estejam ao alcance de todos, se torna quase que impossível um “santo nascer” altruísta, cordial e respeitoso.

As coisas mudarão? Provavelmente! Agora, se para melhores isso não podemos prever, pois o ser humano é imprevisível nas diversas maneiras de surpreender a si mesmo.
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1E caminham de mãos dadas hoje sob outra forma: o imperialismo de mercado. No qual os países desenvolvidos economicamente entopem de produtos materiais e simbólicos os países “periféricos”, exercendo desta maneira forte influência na formação dos valores morais, nos padrões estéticos e outros.
2Chamado Estado de Bem-estar Social, ou Welfare State.
3Este apontamento é somente uma hipótese bem generalista que desconsidera outros fatores.
4Aristóteles afirma que só é possível existir Justiça entre Iguais.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Carta aos emancipados intelectuais

O professor autônomo deve primeiro questionar suas fontes documentais, abandonando deste modo a tradição positivista, que aceitava “verdades” prontas de “documentos oficiais” sem repensar suas intenções, o contexto social neles expressos e o autor. Aliás, é preciso antes de tudo, ir direto às fontes e depois ler os comentadores das fontes. Mas porque estou falando isto?

Durante esta semana, através de jornais televisivos e noticiários on-line, tomei contato com uma discussão que muito me chamou atenção a respeito de um determinado livro didático comprado pelo Governo Federal. Segundo o jornal paulista O Estadão, este livro tem a intenção de tratar os pobres como coitadinhos e des-instruir nossas crianças para habilidades de domínio da Língua Portuguesa, tendo em vista que utiliza expressões coloquiais em algumas lições.

Primeiro: o livro não faz apologia a grafia incorreta da norma culta portuguesa, muito pelo contrário, o que ele aborda é que existem outros códigos de linguagens existentes, sobretudo na fala oral, cujo os quais não precisam respeitar critérios tão restritos definidos pela filologia da língua latina portuguesa historicamente estabelecida.

Sobre isso, eu gostaria de comentar que, seguindo essa lógica, os "ricos", as elites economicamente estabelecidas, deveriam então dominar completamente a língua-mãe (madrasta?), mas não é isso que acontece. Existem regionalismos linguísticos diversificados nos diferentes estados, apenas unidos por esta inventada e forjada nação. Nação unida por uma língua padrão herdada de europeus, que usaram e abusaram de povos que viviam aqui e de povos que trouxeram para cá.

Apesar de forçosamente tentar me adequar ao que chamo de português mínimo, sou da opinião de que a função básica da linguagem é transmitir a comunicação de um enunciado, portanto, se consegue fazê-lo, ótimo. Acredito que a linguagem deve servir ao povo, ser instrumento da sociedade e não o contrário. Me parece que temos nos tornado escravos da língua, de que não é mais ela que deve se adequar (mesmo que historicamente se transformando) a nós, mas sim que devemos servi-la a todo custo. Assim voltaremos ao positivismo.

Segundo: o texto do Estadão fala sobre crianças. E o livro é destinado ao EJA (Educação para Jovens e Adultos). Ou seja, são pessoas que a educação primária, conteudística, livresca, rebuscada, arcaica (seja de escola pública ou particular) falhou. Repetir o método seria válido? O que é melhor, ensinar locuções conjuntivas adverbiais ou pensar criticamente usando o pouco que sabe, mesmo que através da fala oral pouco instrumentalizada? Acho que o ensino fundamental incompleto do Lula nos mostrou que o doutorado em Sociologia do erudito FHC nem sempre significa uma hierarquia superior de conhecimento, vide a redução da pobreza e alavancada da economia nacional na gestão do nordestino. Talvez, se esse pessoal do Estadão lesse o Paulo Freire[1] (que tanto a gente xinga e já até ultrapassou na Universidade) entenderiam do que eu falo. Ou talvez entendam e estejam apenas fazendo política.

Ok, eu também sou um crítico extremo do Governo do PT, com seus Dirceus, Palloccis e Mensalões...mas temos que saber quais armas usar para criticá-los; com certeza, as melhores não serão as mesmas usadas pela Imprensa Golpista ligada às oligarquias da direita, que viram seus candidatos serem derrotados. Primeiro por um ex-operário sem dedo, e depois por uma ex-comunista que lutava contra a ditadura militar. Engraçado! É a mesma ditadura que O Estadão, A Folha de São Paulo, A Rede Globo e outras mídias golpistas apoiavam.

Quando a disciplina de História perdeu algumas aulas no Ensino Médio, não vi uma reportagem sequer a respeito de tal acontecido. É óbvio, ensinar História é perigoso. Sim, perigoso para quem tem muito a esconder, porque a informação crítica e diversificada é a melhor arma para desmontar um falso discurso democrático.

Nenhum tipo de informação ou conhecimento deve ser assimilado previamente como verdade pronta e acabada. Porque a autonomia, a emancipação intelectual e a liberdade de pensar é construída somente após uma pesquisa crítica onde existem visões plurais.

Leiam outros jornais. Questionem! Faz bem para a saúde mental.
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1Refiro-me ao conceito de “conhecimento bancário” que é capaz de tornar uma pessoa extremamente “culta”, através de uma enxurrada de informações, que em grande parte de sua vida não lhe serve para coisíssima nenhuma.
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